Título: Rafsanjani prepara Irã para guerra
Autor: Lourival Sant'Anna
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2006, Internacional, p. A18

Apoiando as mãos num fuzil-metralhadora, o ex-presidente afirma que Deus está do lado dos iranianos

O presidente do Conselho de Discernimento, Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, fez ontem um discurso destinado a preparar o país para a guerra. No sermão do meio-dia de sexta-feira na Universidade de Teerã - o mais importante evento político-religioso da semana, transmitido ao vivo por rádio e TV -, o ex-presidente do país, apoiando as mãos num fuzil-metralhadora, atribuiu a Deus a vitória do Irã sobre os EUA na crise dos reféns e comparou os cientistas iranianos responsáveis pelo programa nuclear a Galileu e a Copérnico.

"Hoje vou falar sobre as ameaças que podem existir e como temos que nos programar diante delas", começou Rafsanjani, cujo conselho responde pela área estratégica. "No nosso plano de 20 anos, enunciamos como nos tornaremos a primeira potência da região", disse ele, referindo-se a um programa de longo prazo do regime iraniano. "Há muitos obstáculos, mas no Conselho de Discernimento já estudamos e vemos os problemas que emperram nosso desenvolvimento."

Em seguida, Rafsanjani desfiou um rosário de críticas ao próprio regime iraniano, apontando incompetência administrativa e desperdício de recursos. "Se estivéssemos aproveitando bem a riqueza do petróleo, teríamos desenvolvido muito mais o país", analisou Rafsanjani, que lidera a corrente tecnocrática do regime, e perdeu a eleição presidencial no ano passado, quando o clero conservador pôs toda a sua máquina contra ele e apoiou o presidente Mahmud Ahmadinejad, ultra-religioso e nacionalista. Na complexa teia do poder iraniano, no entanto, Rafsanjani mantém a sua fatia considerável.

O ex-presidente contou que em 1979 foi encarregado pelo Conselho da Revolução Islâmica, que vivia então os seus primeiros dias, de estudar "todas as hipóteses" da reação dos EUA à tomada de 63 reféns na embaixada americana em Teerã, por estudantes radicais que apoiavam o movimento fundamentalista. Descrevendo o desembarque de um avião de carga Hercules C-330 no deserto iraniano para resgatar os reféns, o ex-presidente lembrou que "tudo foi muito bem preparado pelos EUA", incluindo intensa atividade de espionagem no terreno e um complô no próprio Exército iraniano para apoiar a operação.

Entretanto, uma tempestade de areia impediu a ação dos helicópteros americanos que seriam empregados no resgate dos reféns. "Vemos que foi uma intervenção divina", interpretou Rafsanjani. "Deus nos salvou com um fenômeno natural", enfatizou. "Naquele dia, não fomos nós os protetores do Irã. Foi Deus", concluiu, num implícito paralelismo com o que pode acontecer nesse novo embate com os EUA.

"Centenas de pesquisadores estão trabalhando no país. Ainda que os mandem parar, não pararão", disse Rafsanjani. "O que vocês puderam fazer contra Galileu e Copérnico?", perguntou, dirigindo-se às potências ocidentais. "O terreno científico estava preparado. Agora também está. Vocês podem acabar com as pessoas. Mas o país já tem a ciência."

"Nós desenvolvemos ponto a ponto o combustível nuclear", asseverou Rafsanjani, para uma platéia de cerca de 8 mil fiéis, que lotavam uma espécie de ginásio destinado a essa pregação semanal. "Vocês acham que o país vai esquecer todas essas pesquisas realizadas?" O ex-presidente continuou: "Não temos nenhum objetivo militar. São vocês que vêem tudo do ponto de vista militar e do poder." E concluiu: "Sem dúvida, seguiremos nosso caminho."

Ao que os fiéis gritaram: "Raiz (líder), morte à América, morte a Israel, morte aos hipócritas. A energia atômica é nosso direito legítimo."

Durante o sermão, Rafsanjani segurou o fuzil-metralhadora. Pelo menos dez homens de seu corpo pessoal de segurança, alguns com fardas pretas e pistolas, se interpunham entre o púlpito e os fiéis. No meio do discurso, um homem jogou um sapato na direção de Rafsanjani e só conseguiu gritar seu nome. Antes que dissesse algo mais, foi agarrado, com a boca tapada, e levado pela polícia. O incidente fez a segurança examinar, na saída, todas as imagens dos cinegrafistas e fotógrafos, censurando a cena. Mas a maioria dos profissionais iranianos nem se tinha dado o trabalho de registrá-la.