Título: Putin delineia a nova guerra fria
Autor: Gilles Lapouge
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2006, Internacional, p. A15

Dentro de dois meses o G-8 (o grupo dos 7 países mais industrializados, mais a Rússia), se reunirá em São Petersburgo, este ano sob a presidência do líder russo, Vladimir Putin. Esta perspectiva explicaria o repentino e forte resfriamento das relações entre EUA e Rússia? Nos últimos 15 dias, pequenas frases perigosas atravessaram os oceanos, lembrando o vocabulário e a retórica que envenenaram o planeta durante a época da guerra fria, até 1990.

No jornal moscovita Kommersant, Andrei Illarionov, que foi um dos conselheiros de Putin, lamentou: "Putin declara guerra (fria) ao Ocidente." Na realidade, para os russos, o verdadeiro arquiteto da guerra fria não é Putin, mas o vice-presidente americano, Dick Cheney.

Qual é o erro de Cheney? No início do mês ele fez um discurso, na Lituânia, declarando que Putin espezinhava a democracia e, além disso, utilizava os recursos energéticos da Rússia (gás e petróleo) como instrumento diplomático.

As acusações de Cheney não são incorretas. São bem normais: Cheney sabe do que fala quando explica que o petróleo é a chave das grandes diplomacias modernas. Mas então, a imprensa russa lançou um ataque enfurecido contra ele e os EUA, falando de: "Termos agressivos", "o inimigo está à nossa porta", "uma nova Fulton" (Fulton é o nome da cidade americana onde Winston Churchill pronunciou, em 1946, a expressão "cortina de ferro", que se tornou imediatamente célebre).

Dias depois, o próprio Putin aproveitou a oportunidade para responder e, indicando os EUA, afirmou: "O lobo come e não tem nenhuma intenção de escutar seja quem for..., portanto, o pathos (a compulsão) pela defesa dos direitos humanos desaparece quando se trata de defender os próprios interesses? Tudo então se torna possível e não há mais limites."

Diálogo fascinante entre o americano e o russo: cada um quer falar do outro e, na verdade, faz mais o seu auto-retrato. Tanto Putin como Cheney são um Himalaia de má-fé.

Essas posições agressivas parecem, à primeira vista, ocasionais: Cheney usa palavras ofensivas e Putin responde em cima. Mas, para Illarionov, o antigo conselheiro de Putin, toda essa polêmica responde a uma visão a longo prazo.

Segundo ele, nos três últimos anos Putin pôs ordem na casa russa. Agora, seguro de sua força, e apoiado pelos enormes benefícios que a Rússia tira do petróleo e do gás, ele estaria engajado em uma nova fase, voltada para o mundo exterior, visando restituir à Rússia não o status de superpotência, do qual a União Soviética desfrutou até seu declínio, mas pelo menos voltar a ser um dos grandes impérios do mundo.

Assim se explicariam as denúncias de Putin contra a fortaleza americana e a importância que deu, não só ao papel do gás e do petróleo russo, mas também à necessidade do rearmamento. Ele nunca perde a oportunidade de sublinhar que os esforços realizados por Moscou em favor de seu Exército são apenas uma resposta ao superarsenal americano.

Ele afirmou em seu discurso sobre o estado da nação: "O orçamento consagrado pelos EUA à defesa é 25 vezes maior do que o da Rússia." Essas palavras foram marcadas por uma pausa. Em seguida, ele disse: "Muito bem." Ele esperou pelos aplausos e concluiu: "Nós, russos, devemos também construir uma defesa sólida porque sabemos o que se passa no mundo."

Essas ameaças foram encobertas pelas profissões de fé em favor da paz. Mas já estamos habituados a essas "retóricas em prol do ser humano" dos soviéticos, que ocultam condutas muito menos humanistas. Ainda estamos longe do retorno da guerra fria, mas apenas em razão da relativa fraqueza da Rússia. Em compensação, o que é certo é que as coisas mudaram desde o período que se seguiu ao ataque de 11 de setembro de 2001, quando Moscou e Washington proclamaram sua união sagrada contra o terrorismo.