Título: Nós, a China e a OMC
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

A enorme expansão da China é um fenômeno paradoxal. Sua competência estratégica faz possível que o país se beneficie de muitos dos espaços que o mundo globalizado torna possíveis; e evita boa parte dos danos que a abertura radical acarreta a grandes nações da periferia. Mas a lógica das cadeias produtivas globais faz dos EUA e da China verdadeiros irmãos siameses. Os produtos de empresas norte-americanas - ou chinesas - fabricados a preços baixos na China mantêm a inflação dos EUA sob controle, porém são responsáveis por 30% do seu gigantesco déficit comercial de US$ 700 bilhões. Mas os chineses destinam boa parte desse saldo para a compra de títulos do Tesouro norte-americano, ajudando a financiar seu rombo. O próprio embaixador dos EUA na Organização Mundial do Comércio (OMC) reconhece que os dois países, juntos, foram "responsáveis por 50% do crescimento do PIB mundial nos últimos quatro anos". O que não impede as freqüentes estocadas norte-americanas na questão de Taiwan, nas relações da China com o Japão, nas pressões para a desvalorização do yuan, nas críticas à política de direitos humanos, nas exigências de maior abertura e contra a tolerância a produtos copiados.

Uma boa caricatura dessas contradições foi o resultado da presença do presidente Hu Jintao nos EUA na semana passada. Após visitar a Boeing, onde anunciou os 2 mil aviões de que o país vai necessitar nos próximos 15 anos - e comprou 80 deles por US$ 5,2 bilhões -, Jintao foi recebido na Casa Branca com a rudeza reservada atualmente aos não "alinhados". O jornal The Washington Post lista os constrangimentos por que passou o presidente chinês, incluindo ser puxado pela manga do paletó por Bush, "como uma criança perdida a quem se indica o lugar". O hino nacional anunciado foi o da República da China, nome oficial do inimigo Taiwan. Em seguida, uma ativista da seita Falun Gong, conhecida por seu radicalismo - a quem estranhamente o cerimonial havia concedido uma credencial de imprensa -, interrompeu a fala de Jintao aos gritos de "presidente Hu, seus dias estão contados.(...) Bush, faça-o parar de matar". Segundo o jornal, o Serviço Secreto demorou três minutos para silenciá-la, como se quisesse "deixá-la gritar até perder a voz". Finalmente, nem sequer a bandeira da China tremulou ao lado da dos EUA.

A questão é que a dinâmica da economia e do comércio mundiais dependem da China. Este país entrou na OMC em 2001 após longa batalha. Há cerca de dez anos, quando a China ainda lutava por seu ingresso, os EUA resistiam, alegando desrespeito chinês aos direitos humanos. Eram tempos mais suaves, sem Iraque e Guantánamo. Nessa época, participei de seminário no Instituto de Estudos Estratégicos em Washington sobre a admissão da China. O convidado principal era um importante ministro chinês, que teria 30 minutos para falar. Ele usou apenas cinco, para dizer algo como: "Precisamos entrar na OMC. Vamos perder mais do que ganhar no curto prazo, pois teremos que fazer concessões. Vocês resistem. Pois lembrem que somos um trem carregando 1 bilhão de pobres. Cabe a vocês ajudarem a mantê-lo nos trilhos. Se criarem grandes obstáculos e o trem virar, serão 1 bilhão de chineses a se espalhar mundo afora. Não vou perder mais tempo com conversas, tenho de negociar." Para pasmo geral, o dirigente chinês levantou-se e saiu.

Qual imenso dragão em loja de cristais, a China hoje está na OMC. E nós podemos beneficiar-nos muito disso. Esse país é o único a desenvolver pelo menos cinco estratégias simultâneas. É aberto em tudo o que lhe convém, haja vista ter-se transformado no "chão de fábrica" das grandes corporações globais. Mas também é altamente fechado no que lhe interessa. Tecnologias de ponta - como as que o transformaram num dos maiores lançadores de satélites de telecomunicação e no primeiro pretendente a uma internet alternativa - são intensamente desenvolvidas nos cerca de 60 centros de pesquisa criados a partir de 1988 pelo programa Torch, o que dá ao país condição de adicionar cada vez mais valor às suas exportações. Por outro lado, com seus US$ 800 bilhões de reservas, a China compra pacotes tecnológicos inteiros no exterior, como fez com a área de laptops da IBM, criando a Lenovo e se dando ao luxo de abandonar rapidamente a marca mundial ThinkPad. Ao mesmo tempo, o país é o maior "copiador" do mundo, abarrotando os mercados mundiais com imitações.

Agora está na OMC, e pode fazê-la mais flexível às suas estratégias. Isso nos interessa. Lembremos o dogma da OMC: "Abertura irrestrita de mercados favorece a todos." Sabemos que essa tese se sustenta só como discurso hegemônico. Num mundo sem barreiras, ganha quem é mais competitivo, o que ocorre habitualmente com os mais fortes. Estes, aliás, assim se tornaram porque protegeram intensamente - e protegem - seus mercados. É ótimo, pois, contarmos com a companhia heterodoxa da China. Não cabem, porém, ingenuidades: os chineses estarão sempre perseguindo apenas o que lhes interessa. Mas não há dúvidas de que - como o mundo precisa muito mais deles do que de nós - as concessões que terão de ser feitas para acomodar os chineses poderão criar brechas que interessem ao Brasil e a outros grandes da periferia.

O "bom-mocismo" nunca abriu espaços na área internacional, especialmente no comércio. Valem aí habilidade, pragmatismo e "reservas de poder". A presença da China pode ajudar a flexibilizar uma excessiva rigidez relativa ao bordão da liberdade radical de comércio e radicalizar conceitos de reciprocidade. Para isso, é claro, ela mesma precisa conseguir manter seu próprio trem político e social nos trilhos, o que pode ser tarefa difícil até para um exímio dragão equilibrista.