Título: 'A humanidade caminha para a paz, lentamente', diz Dalai Lama
Autor: Ricardo Anderáos, Otávio Dias
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Vida&, p. A26

Líder espiritual tibetano justifica seu otimismo comparando o mundo de hoje ao da 1.ª metade do século 20

"A humanidade está caminhando em direção à paz, lentamente. Nossas sociedades estão ficando mais maduras." A declaração parece absurda. Particularmente diante da escalada bélica que domina o noticiário internacional e do festival de corrupção que assola o Brasil.

Mas, vinda de quem vem, merece ser ouvida com um pouco de atenção. Afinal, o monge tibetano Tenzin Gyatso, mais conhecido como Dalai Lama, viveu ao longo de seus 70 anos algumas das mais dramáticas conseqüências do belicismo e do autoritarismo político.

Durante a palestra Coração e Mente Abertos, que ministrou na manhã de sexta-feira, no Palácio das Convenções do Anhembi, o Dalai Lama fundamentou na história sua aposta pelo futuro da paz.

"Até a metade do século 20 as pessoas aceitavam a guerra como algo inevitável. Os cidadãos lutavam sem questionamento e até com certo orgulho. Mas a partir dos anos 60 isso começou a mudar. Por toda parte as pessoas passaram a se opor à guerra", afirmou.

Para ele, esse grande movimento se aprofundou com a derrocada de diversos regimes autoritários. "Nos anos 90 a democracia passou a prevalecer, da União Soviética ao Chile. No século 20 houve muito derramamento de sangue. Este século começa de maneira conturbada. Mas, na comparação entre os dois, acho que o século 21 será um século da paz", afirmou.

Dalai Lama fez nesta semana sua terceira visita ao Brasil. A primeira foi à época da ECO-92, no Rio, e a segunda, às cidades de Curitiba e Brasília, em 1999. Desta vez, ficou quatro dias e fez palestras para budistas, para médicos e cientistas e para o público leigo, ainda que simpatizante de suas idéias. Antes de voltar do almoço para a palestra da sexta-feira à tarde, intitulada Ciência e Espiritualidade, ele concedeu uma entrevista exclusiva ao Estado.

Diplomaticamente, evitou uma resposta direta à pergunta sobre nossa crise política e a desilusão do povo brasileiro com os políticos. "Isso não acontece só aqui, mas na Itália, na França, em todos os lugares. Na China também, com certeza."

Com seu inabalável otimismo, não acredita que a desilusão com os políticos possa levar a população a apoiar a volta de um regime autoritário. "A democracia e a sociedade aberta são muito melhores do que a ditadura. Se você busca uma coisa perfeita, saiba que não há perfeição neste mundo."

RESPONSABILIDADE

Apesar da profissão de fé democrática, ele alerta para o fato de que o bom funcionamento desse regime depende da responsabilidade individual.

"Usar a liberdade para o que se quer, sem responsabilidade, não é bom. Isso vale para os cidadãos, os líderes políticos, religiosos, empresariais, todo mundo", completou.

Durante sua visita a São Paulo, o Dalai Lama falou para públicos bem distintos. Na quinta-feira, fez uma palestra de caráter mais religioso, intitulada Natureza e treinamento da mente no Budismo tibetano. O evento aconteceu no templo chinês Zu Lai, que abriga a Universidade Livre Budista, em Cotia. Participaram praticantes e líderes de todas as vertentes dessa religião presentes no Brasil, do Zen japonês, passando pela Terra Pura chinesa, até as quatro escolas tibetanas, Nyingma, Kagyü, Sakya e Gelug - da qual o Dalai Lama é o líder máximo.

Na sexta, o Palácio das Convenções do Anhembi foi lotado por estudantes e profissionais de saúde, além de simpatizantes do budismo. Uma das questões debatidas foi o risco de os médicos e enfermeiras desenvolverem uma certa frieza para poder encarar o sofrimento de seus pacientes. "Esse perigo realmente existe. No Tibete, quando um médico tem boa formação mas seus tratamentos não surtem efeito, dizemos que ele é estudado mas não tem o coração aberto. Acho importante que médicos e enfermeiras sejam continuamente treinados nos benefícios da compaixão", disse o líder religioso.

À tarde, um grupo de pesquisadores da Unifesp nas áreas de neurociência, psicobiologia e psicologia debateu com o Dalai Lama as comunicações entre a ciência e o budismo.

"Há alguns anos comecei a promover encontros e seminários sobre esse tema com cientistas reconhecidos. A partir deles, certos experimentos começaram a ser feitos. Pesquisas investigam qual parte do cérebro é ativada quando se faz meditação unidirecionada, meditação baseada na compaixão ou meditação com ausência de pensamentos. Os neurologistas têm descoberto conexões interessantes entre esses diferentes estados mentais", afirmou.

CAFÉ DA MANHÃ

Em seu último dia de palestras, ontem, o líder budista levou 6.000 pessoas ao Ginásio do Ibirapuera. Descontraído, tirou os sapatos logo que subiu ao palco e, assim que as luzes se apagaram, fez a primeira piadinha: "Agora, quem quiser dormir durante a conversa já pode". Disse que, quando se dirige a um público como aquele, fala com pessoas iguais a ele. "Vocês podem me ver de diferentes maneiras. Mas sou em primeiro lugar um ser humano e, em último, um Dalai Lama. É nesse primeiro nível que me comunico."

"Sou uma pessoa que não tem nada a oferecer, nenhuma idéia nova. Mas como sou septuagenário, posso compartilhar minhas experiências." Com essa frase ele deu a deixa para contar como faz para ter sua saúde em equilíbrio. "Se você mantém a mente calma, vira uma pessoa mais descontraída e, consequentemente, sua condição física é melhor."

Dalai Lama contou que dorme entre oito e nove horas por noite, nunca janta, e que, por isso, o café da manhã é para ele uma refeição muito importante. Na catedral da Sé, com representantes de outras religiões, falou de tolerância religiosa. No campo das idéias e no prático, Dalai Lama agradou a todos que o escutaram na visita ao maior país católico do mundo.