Título: China e Sudão, sangue e petróleo
Autor: Nicholas D. Kristof
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Internacional, p. A23

Os americanos se habituaram a bater na China por todos os motivos errados. É uma hipocrisia dos Estados Unidos reclamar com o presidente Hu Jintao - como fizemos durante a visita dele, há menos de duas semanas - sobre a subvalorização da moeda da China. Claro, esse é um problema para a economia mundial - mas nem de longe tão grave como nossos próprios déficits orçamentários, provocados por reduções tributárias que não podemos nos dar ao luxo de bancar.

Estamos agora viciados no capital vindo da China e de outros países, e isso deveria ser motivo de preocupação. Mas a China não é culpada por nossos déficits, e viciados como nós não têm base para reclamar da torpeza moral daqueles que fornecem capital barato ou outros narcóticos.

Entretanto, existem dois bons motivos para reclamar com o presidente Hu.

Primeiro: ele tem presidido uma ampla repressão à liberdade de expressão na China, incluindo a prisão, durante 19 meses, de meu colega Zhao Yan, funcionário do New York Times.

Segundo: a China está agora endossando seu segundo genocídio em três décadas. O primeiro ocorreu no Camboja de Pol Pot e o segundo é em Darfur, no Sudão. As aquisições de petróleo por parte dos chineses têm financiado o saque de Darfur pelo Sudão. Fuzis AK-47 de fabricação chinesa têm sido a principal arma no massacre de centenas de milhares de pessoas em Darfur até agora, e a China tem protegido o Sudão no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

De fato, é por causa do apoio da China que o Sudão sentiu que poderia ficar impune este mês enviando um exército aliado para invadir o vizinho Chade.

Já faz mais de dois anos agora que tenho criticado insistentemente o presidente Bush por causa de sua recusa em fazer do combate ao genocídio em Darfur uma prioridade de sua administração. Mas Bush adotou meias medidas na direção certa - incluindo pressionar o presidente Hu para cooperar a respeito de Darfur -, e isso é mais do que se pode dizer de líderes da maioria dos outros países. A Europa tem dormido e roncado durante este genocídio. Depois, tem a Liga Árabe, que se reuniu no mês passado no Sudão, dessa forma legitimando o assassinato de centenas de milhares de muçulmanos (quase todas as vítimas em Darfur são muçulmanas).

'HIPOCRISIA'

Como escreveu Fatema Abdul Rasul no Daily Star do Líbano este mês: "É hipócrita e vergonhoso que todo o mundo árabe e muçulmano permaneça em silêncio enquanto milhares de pessoas continuam a ser mortas em Darfur."

E onde está a imprensa árabe? Será que o assassinato de 300 mil ou mais muçulmanos não é quase tão ofensivo quanto uma charge dinamarquesa?

O maior obstáculo para uma ação vigorosa é a China. O último abuso aconteceu há poucos dias, quando os Estados Unidos e a Grã-Bretanha tentaram impor a mais frágil possível das sanções - tendo na mira apenas quatro pessoas, entre elas uma autoridade sudanesa de nível médio, e a China e Rússia obstruíram até mesmo essa ação patética.

Por que a China é branda com o genocídio?

O motivo principal é o petróleo. Tradicionalmente, a China era auto-suficiente em petróleo, mas desde 1993 começou a ser uma importadora de petróleo e está cada vez mais preocupada com sua vulnerabilidade.

Assim, a China tem se ocupado em tentar garantir suprimentos de petróleo do maior número de fontes possível. E, em parte pelo fato de que a maior parte dos principais campos petrolíferos já tem compradores para toda sua produção, restaram à China os bandidos do mundo - Sudão, Irã e Mianmá (antiga Birmânia). E a China tem sido particularmente atuante na África.

Cerca de 60% do petróleo do Sudão flui para a China. E este país tem uma estreita relação econômica e mesmo militar com o Sudão. Um relatório recente do Conselho de Relações Externas sobre a África observa que a China tem fornecido ao Sudão armas de pequeno porte, minas antipessoa, canhões, tanques, helicópteros e munição.

A China chegou até a estabelecer três fábricas de armas no Sudão, e é possível encontrar fuzis AK-47 de fabricação chinesa, granadas propelidas por foguete e metralhadores por toda a região de Darfur.

No mês passado, entrevistei num vilarejo na fronteira entre o Chade e o Sudão um homem que me contou como uma milícia sudanesa pegou seu filho pequeno, Ahmed Haroun, lançou-o ao chão e deu-lhe um tiro no peito. As possibilidades de que essa arma de fogo e essas balas tivessem vindo da China são altíssimas.

O mesmo ocorre com relação às mulheres e crianças que vi dilaceradas por balas em Darfur e no Chade - aquele chumbo foi moldado nas fábricas chinesas. Quando mulheres são estupradas e mutiladas em Darfur, os canos de revólveres apontados para suas cabeças são Made in China.

Nossa esperança é que os 13 milhões de blogueiros da China tomem para si esta questão, pois ela tem recebido muito pouca atenção na China, mas não é um assunto tão melindroso que sua discussão possa levar alguém para a cadeia.

Uma das principais questões para o século 21 será se a ascensão da China virá acompanhada de um comportamento cada vez mais responsável em suas relações internacionais. Darfur é um teste e, por enquanto, a China está fracassando.