Título: O novo apartheid à indiana
Autor: Randeep Ramesh
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Internacional, p. A22

Construção de luxuoso enclave para ricos reflete profundo agravamento das desigualdades com a globalização

Boris Becker, de terno, sacode a cabeça e fala para a câmera: "Não, sinto muito. Não posso pensar em nenhum outro lugar onde gostaria de viver mais do que neste lugar." Rodeado por chalés de madeira em estilo suíço e gramados verdejantes bem aparados, o ex-campeão de Wimbledon se afasta, presumivelmente para sua casa. O comercial, que aparece repetidamente na TV indiana, passa a impressão de que Becker deseja viver o resto da vida à sombra das Montanhas Sahyadri, um oásis verde na poeira do Estado indiano de Maharashtra.

O que está sendo anunciado é uma novidade no país: um enclave privado que separará 35 mil moradores ricos da pobreza massacrante do país. No processo, 4.500 hectares de floresta primária estão sendo lentamente convertidos num distrito residencial chamado Aamby Valley, isolado por um muro de de dois metros de altura encimado por uma cerca eletrificada. No interior, cada casa tem um botão de alarme e as ruas são monitoradas por câmeras de TV em circuito fechado. Vigiada por uma força policial armada, a cidade é vedada a não moradores - intencionalmente separada do resto da Índia.

Sob muitos aspectos, Aamby Valley mais parece um resort de luxo do que uma utopia exclusiva. Ele alardeia um dos melhores climas do país, com temperaturas raramente excedendo 32 graus. Possui parques aquáticos, trilhas de caminhada, paredões para escalar, campo de golfe de 18 buracos, restaurantes cinco-estrelas, hospital com 1.500 leitos e aeroporto para jatos particulares. Com apenas 250 das 7 mil casas construídas, Aamby Valley transmite a sensação arrepiante de um cenário abandonado de Hollywood. Mas o complexo é mais do que um empreendimento imobiliário chique. Ele marca uma mudança de passo na evolução da Índia de país sujo e pobre para um de renda média, não incomodado pelo fato de que os ricos estão ficando mais ricos - alguns muito ricos mesmo.

Anteriormente, os ricos tinham de lidar com a pobreza sufocante do país, dirigindo seus Mercedes entre vacas indolentes e desviando das poças de urina da calçada em seus sapatos finos Manolo Blahnik. Não havia maneira de se esquivarem do crime, do tráfico e do barulho que permeavam as ruas do país. Até a Índia se globalizar nos anos 1990, os indianos tendiam a se identificar com os pobres - um traço social que tirava inspiração do exemplo do ascético Mahatma Gandhi.

A Índia de Gandhi, ou pelo menos sua influência na economia, quase desapareceu na última década. De 1947 a 1991, a economia cresceu 3,5% ao ano, a chamada taxa de crescimento hindu, que privilegiava igualdade e estabilidade social, em vez de riqueza. Após 1991, isso tudo mudou. Noções de velocidade e eficiência foram carimbadas numa civilização que tradicionalmente adotava um estilo de vida mais lento, mais relaxado. O crescimento econômico avançou para 6% ao ano. Nos últimos três anos, chegou a 8% - com o que a economia dobrará de tamanho em uma década. A mensagem agora é semelhante à da China nos anos 90, na expressão atribuída a Deng Xiaoping: "Enriquecer é glorioso." Não que a riqueza tenha atingido todo o país. A Índia é uma mesma terra, mas ricos e pobres existem em planetas aparentemente distintos.

Algumas realidades diárias passam virtualmente despercebidas: a taxa de desnutrição em crianças com menos de 5 anos é vergonhosamente alta, 45%. Menos de um terço das casas da Índia têm banheiro e a maioria das mulheres precisa esperar até escurecer para se aventurar a sair para atender aos apelos da natureza. Falar em pôr fim à pobreza soa oco na Índia, que abriga um terço dos pobres do mundo e onde cerca de 300 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1 por dia.

Mas um outro mundo está crescendo, alimentado pela imensa riqueza amealhada pelas novas classes endinheiradas, que compram produtos de grife, esquiam nos Alpes e enviam seus filhos a Harvard. Muito em breve o país terá 3,8 milhões de famílias com uma renda anual de 10 milhões de rupias (US$ 225 mil). Abaixo delas, em qualquer lista de riqueza, está a classe média, estimada em 150 milhões de pessoas. Sua fome por bens tem alimentado uma nova cultura do dinheiro - como ganhá-lo e como gastá-lo. As massas indianas, sob a economia estatal mais voltada para a igualdade, não tinham opções de compra. O país vive um boom de consumo. Para alguns, isto é prova suficiente de que, com a abertura, a Índia ganhou com a globalização - permitindo a entrada de Dior, Bulgari e Rolls-Royce no país.

Aamby Valley oferece a indianos uma maneira de comprar seu lugar fora do Estado: um hectare custa 70 milhões de rupias (US$ 1,5 milhão). O preço do chalé de madeira de dois quartos mais barato é US$ 335 mil - 90 vezes a renda anual de uma família indiana média. Só isso já garantirá que a Índia florescente se mantenha apartada das massas indigentes.

No centro do surgimento desses empreendimentos está a privatização dos espaços urbanos. Aamby Valley é gerido por uma empresa privada, Sahara, um conglomerado de negócios indiano que lançou uma empresa aérea nacional, possui estações de TV e opera uma rede bancária rural no norte do país.

As regras e regulamentos do distrito residencial, que estão sendo formulados, lembram o zelo cingapuriano por lei e ordem. Poucos lamentarão a proibição do repulsivo hábito indiano de dar cusparadas vermelhas de "paan", a pasta de mascar feita de noz de bétele que emporcalha a maioria das ruas, ou proibir homens de usar o meio-fio como banheiro público. Mas, dentro de uma década, Aamby Valley será entregue a uma empresa contratada para administrar os serviços urbanos. O distrito será governado por um conselho que será "escolhido e não eleito", e um novo conjunto de regulamentos brotará para determinar de que cor cada chalé poderá ser pintado e onde os moradores poderão estacionar suas limusines.

Tudo isso aponta para uma tendência mais profunda: uma classe crescente de pessoas com grande desconfiança do governo, sonhando com a criação de uma Shangri-lá indiana. Os novos-ricos na Índia estão silenciosamente abandonando o Estado: pagando por sua própria força policial privada e jogando golfe em campos particulares. Parece haver pouca preocupação com a melhoria dos serviços públicos ou com os pobres às voltas com escolas e hospitais decrépitos. Esse tipo de desigualdade institucional tem raízes no sistema de castas, a hierarquia social da Índia, mas em breve ela será atravessada por outro conjunto de divisões em que as cidades mais antigas ficarão repletas de uma subclasse indiana. Basta olhar a TV para ver essa nova Índia sendo criada. Os personagens em anúncios de carros indianos sempre parecem estar dirigindo em rodovias impecáveis nas florestas da Áustria ou ao longo de praias da Califórnia, sem buracos ou vacas sagradas à vista.

Há um sentimento exultante entre os abonados de que uma Índia ousada está reivindicando o lugar que lhe cabe no mundo. Para eles, numa era de alta tecnologia e armas nucleares, a imagem da Índia no exterior já não pode se resumir a elefantes, marajás e crianças maltrapilhas de barriga inchada.

Muitas vezes é preciso uma celebridade para tirar os pobres da Índia do anonimato. A romancista Arundhati Roy compara o progresso do país a dois comboios de caminhões: um pequeno grupo a caminho de "um destino glorioso perto do topo do mundo", e um grupo mais volumoso que "se funde com a escuridão e desaparece".

"Uma parte da Índia se apartou da nação", diz ela. "Esse projeto de globalização corporativa criou uma clientela de pessoas muito ricas que estão exultantes. Elas não se preocupam com que os ambulantes sejam retirados das ruas e as favelas desapareçam da noite para o dia." Para a escritora, a Índia não está se unindo, mas se dividindo, porque a liberalização convulsionou o país numa velocidade sem precedente e inaceitável. Nas cidades, as favelas estão sendo derrubadas quarteirão após quarteirão, abrindo espaço para reluzentes prédios de apartamentos. Em nenhum outro lugar essa mudança é mais profundamente sentida do que nas áreas rurais - onde, diz Roy, "a Índia não vive, ela morre". A Índia é, em grande parte, um mosaico de 500 mil aldeias, com cerca de mil habitantes cada. Essa unidade demográfica básica acatou, por séculos, uma ordem invisível definida por regras de casta, colheitas e festivais religiosos. Mas o florescimento do capitalismo - que, nas cidades da Índia, se traduz em consumismo galopante, arquitetura extravagante e costumes sexuais mais frouxos - teve um efeito mais desagregador nas aldeias do país.

A poucas centenas de quilômetros de Aamby Valley, em Vidarbha, no cinturão agrícola no leste de Maharashtra, há campos de solo negro que no passado rendiam ricas safras de "ouro branco", como era conhecido o algodão. Mas esse cultivo perdeu o brilho nos últimos anos. A chegada de novos pesticidas, sementes geneticamente modificadas e tratores imponentes que consomem uma gasolina cada vez mais cara elevou o custo da produção. Ao mesmo tempo, a Índia desmantelou a barreira de tarifas que continha a entrada de algodão estrangeiro como parte de seu esforço de liberalização.

Os agricultores de Vidarbha, sem a proteção de tarifas e controles de mercado, precisam competir com plantadores da União Européia e dos EUA que são subsidiados numa base de bilhões de dólares por ano. Os últimos vestígios de apoio governamental foram retirados nos últimos meses. O resultado é que os plantadores de algodão empobreceram em poucos anos. Muitos se endividaram para sobreviver - primeiro em bancos e depois com agiotas. Encadeados à pobreza por dívidas que não conseguem pagar, os agricultores começaram a vender inicialmente suas carroças, depois seu gado, depois a terra e as casas. Alguns oferecem seus rins por US$ 2.500.

A globalização na Índia tem sido um processo brutal. Quanto maiores os ganhos da Índia com mercados abertos, maiores as mudanças desagregadoras. E os indianos que se contam entre os perdedores desse processo superam facilmente o número de ganhadores. Cada um dos mais de 400 milhões de trabalhadores agrícolas rende à Índia apenas US$ 375 por ano em produção. A cifra comparável produzida pelo pouco mais de 1 milhão de engenheiros de software é US$ 25 mil.

Mesmo com essas desigualdades, as previsões da CIA e de bancos de investimento são de que a Índia, juntamente com a China, dominará a economia mundial em poucas décadas. A China já é a segunda maior economia do globo. O Produto Interno Bruto indiano, calculado segundo a paridade do poder de compra, está prestes a superar o do Japão no terceiro lugar. Um futuro de uma riqueza ainda maior parece assegurado. Mas persiste o fato de que a Índia continua sendo um lugar aterrador para os pobres.