Título: Família Hitler termina nos EUA
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Internacional, p. A20

Últimos três descendentes, por linhagem paterna, do pai de Adolf vivem em Long Island e teriam pactado não ter filhos

O paisagista de Long Island espiou pela porta. Era outro visitante chegando com um notebook, uma credencial de imprensa e a palavra iniciada por H nos lábios. Mais um jornalista perguntando sobre seu tio-avô Adolf.

O visitante perguntou ao paisagista sobre seu pai, que nascera William Patrick Hitler, filho de Alois Hitler Jr., que era meio-irmão de Adolf Hitler (eles tiveram o mesmo pai). Alois chamava seu filho de Willy. O führer chamava Willy de "meu abominável sobrinho".

Willy Hitler nasceu em 1911 em Liverpool, Inglaterra, e na mocidade tentou ocasionalmente tirar vantagem de seu sobrenome em seu país natal, na Alemanha e, depois, nos Estados Unidos, para onde se mudou em 1939. Depois da 2ª Guerra Mundial, porém, ele resolveu mudar o nome e se transferiu de Nova York para Patchogue, em Long Island, onde criou quatro filhos - Alexander, Louis, Howard e Brian - antes de morrer, em 1987, aos 76 anos.

Howard morreu num acidente de carro em 1989. Os outros irmãos continuaram vivendo de trabalhos discretos - Alexander como assistente social, Louis e Brian em seu próprio negócio de paisagismo. São pessoas típicas de Long Island,de meia idade e classe média, dois deles vivendo juntos. São também os últimos membros da linha sanguínea paterna de Adolf Hitler.

Eles se mudaram da casa de madeira de dois andares onde cresceram na Rua Silver em Patchogue, onde o pai tocava um laboratório de exames de sangue. Para seus antigos vizinhos, muitas coisas neles e em sua criação parecia bem americana - até ostensivamente -, mas alguns desses vizinhos lembram de uma família um tanto arredia às outras, falando alemão em casa, e um patriarca com uma ligeira, apenas ligeira, semelhança com uma certa figura soturna da História.

Uma nova peça de teatro, Little Willy, baseada na vida de William Patrick Hitler, está sendo encenada este mês em Manhattan, e quando um jornalista foi à casinha de Louis e Brian para saber qual a sua reação, Louis, como os outros irmãos, não quis ser entrevistado. Ele disse que em breve eles próprios estarão contando a sua história. "Por que falaríamos com alguém quando estamos escrevendo nosso próprio livro?", disse ele. "Temos um advogado e um agente."

O livro abordaria as histórias intrigantes que circularam sobre eles nesta parte de Long Island por décadas? Willy realmente teria chantageado o tio Adolf com informações sugerindo que o führer poderia ser meio judeu? Os filhos de Willy realmente tinham Adolf como nome do meio? Nenhum dos quatro irmãos teve filhos: seria um pacto para acabar com a descendência de Hitler?

Louis não respondeu, dizendo que não queria discutir sua família.

A história da família de Willy Hitler em Long Island é uma narração familiar fascinante, e fragmentos podem ser recolhidos em artigos ocasionais na mídia. A capa de um livro de 2001, The Last of the Hitlers (Os últimos dos Hitlers), mostra a foto de cada irmão no registro escolar do ensino secundário sobreposta à face de Hitler e sugere que os irmãos fizeram um pacto para não terem filhos.

O livro e muitos artigos ocultam o sobrenome e o paradeiro dos irmãos; este artigo faz o mesmo, a seu pedido repetido e veemente, porque os irmãos dizem temer um assédio da mídia e de pessoas atribuindo-lhes falsamente a condição de nazistas.

Willy, que também era conhecido como Patty pelos vizinhos, tocava seu laboratório de sangue na casa de madeira de Patchogue. As crianças do quarteirão gostavam de imitar seu elegante inglês com inflexões germânicas e britânicas que se distinguia da fala da população trabalhadora da cidade litorânea de Long Island. Sua esposa, Phyllis, tocava música alemã em casa.

Os meninos brincavam no quintal e no quarteirão. Eles jogavam beisebol no Falcon Field, tomavam refrigerante na Phannemiller's Pharmacy, nadavam no Lago East. Ele se formaram na Patchogue High School.

"Eles eram apenas aqueles quatro garotos alegres correndo em volta daquela casinha", recorda Teresa Ryther, de 43 anos, que cresceu no quarteirão brincando com os irmãos. "Eram como os outros garotos do pedaço, garotos americanos. Era quase como se estivessem se rebelando contra seus antecedentes alemães e sendo intensamente americanos."

Fotografias do jovem Willy mostram alguma semelhança com Adolf Hitler, mas a maioria dos amigos e vizinhos em Patchogue continuou sem saber da relação até Willy lhes revelar pouco antes de morrer. Mesmo assim, Ryther diz que seu pai notou a semelhança.

"Meu pai costumava dizer para minha mãe: 'O Patty não se parece um bocado com Adolf Hitler?'", ela recorda. "Uma vez, meu pai disse à mamãe: 'Acabo de ver o Patty cortando a grama, ele se virou de repente e, meu Deus, parecia exatamente com Hitler.' E eu me lembro de ter pensado: 'Oh, Hitler - ele era um bandido.'"

Ryther se recorda de brincar com soldadinhos de brinquedo com Brian, cujos soldados alemães combatiam os seus, americanos. Louis usava um corte de cabelo parecido com o de seus amados Beatles. Howard era saliente e engraçado; ele tocava bumbo na banda da escola e era finalista nas competições de ciência. O mais velho, Alexander, tinha um comportamento distinto, disse ela.

"Dentro de casa, era muito alemão, muito europeu, e os pais falavam alemão", conta Ryther. "Eu me lembro de que os garotos tinham um navio de guerra de brinquedo que chamavam de Bismarck e o faziam navegar em sua detonada piscina no quintal. Uma vez, eles puseram fogo nele, e tenho esta memória viva de eles gritando: 'O Bismarck está afundando.'"

Gayle e Ronald Perry, que alugaram a casa vizinha em Patchogue por cinco anos, e Kathy Jenner, que vivia do outro lado da rua, não tinham idéia dos antecedentes da família.

A população alemã de Patchogue tinha uma vaga idéia, disse Gottfried Dulias, um ex-piloto da Luftwaffe que sobreviveu a três anos num campo de trabalhos forçados russo e vive em Patchogue há 50 anos. "Eu não o conhecia pessoalmente, mas sabia que ele morava por aqui", diz ele. "Isso é dessas coisas que se ouve dizer, vivendo aqui."

Marilyn Banaszak, de 75 anos, que conhecia a família porque sua sogra vivia na casa vizinha à deles, entregou suas roupas de bebê à mãe dos irmãos quando Brian nasceu.

Ela disse que conheceu a identidade da família num artigo da imprensa em 2002. "Fiquei chocada", disse, "mas, honestamente, isto respondeu a uma porção de perguntas para mim, porque eles eram uma gente tão reservada. Eles eram muito fechados, tudo era uma espécie de segredo. Pat não era nada amigável. Ele era muito fechado. Dizia oi, mas permanecia muito distante. Phyllis nunca contava algo de pessoal."

"Ninguém tem culpa de ser parente de alguém", diz ela. "Pense nas repercussões para as crianças se os garotos da vizinhança soubessem que aqueles meninos eram parentes de Hitler. Eles teriam sido torturados."

Outro amigo de infância dos meninos, Kevin Zegel, conta que, como os outros vizinhos, ia à casa para fazer exame de sangue. "Ainda posso ouvi-lo atendendo ao telefone: 'Alô, Brookhaven Laboratories'", diz ele, imitando o sotaque alemão de Willy. "Phyllis parecia uma fraulein de A Noviça Rebelde", acrescenta.

Zegel, hoje um quiroprático em Massachusetts, diz dos irmãos: "Eu simplesmente me sinto mal por eles terem tido essa coisa (o parentesco) pendurada no pescoço."

Hoje, a casa de dois andares na Rua Silver pertence a Robert Parlamento, de 48 anos, um empreiteiro que se mudou para lá em 1999. Antes, conta ele, "a casa foi usada por fumantes de crack por um tempo e também foi subdividida numa pensão" para trabalhadores diaristas.

Durante as reformas, afirma Parlamento, ele descobriu objetos da família, incluindo equipamentos do laboratório de sangue embaixo das tábuas da varanda traseira. No sótão, havia uma caixa de documentos comerciais, e jornais alemães atrás dos painéis de revestimento das paredes. Ele diz que, quando removeu os painéis do exterior para colocar um revestimento de vinil, descobriu um grande letreiro do laboratório na fachada, que jogou fora.

"Apareceu um cineasta alemão e me disse que um Hitler vivera aqui com sua família", conta Parlamento. "Eu reagi mais ou menos assim: 'Como é? Um Hitler viveu aqui e tocava um laboratório de sangue? O que é isso, o filme Os Meninos do Brasil?"

Parlamento diz que procurou a mãe dos garotos pouco tempo antes que ela morresse em 2002 e lhe pediu para assinar um atestado a fim de conseguir alguns alvarás na prefeitura local. "O sujeito tocava um laboratório num imóvel residencial, e o município caiu em cima de mim por aumentar meio metro na varanda", diz ele.

Quando o visitante perguntou a Louis, antes de este fechar a porta, se ele não se preocupava com a possibilidade de a nova peça chamar a atenção da mídia para sua família, ele respondeu: "Não se preocupe. Estamos acostumados. Vocês batem à nossa porta toda semana perguntando-nos sobre isso."