Título: A quem serve o Estatuto da Igualdade Racial?
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Nacional, p. A10

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99, que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros, indígenas e outras minorias. Este é apenas o prelúdio do que vem a ser o mais vigoroso projeto de racialização da sociedade brasileira.

Trata-se do projeto de lei 3.198, de 2000, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que institui o Estatuto da Igualdade Racial, a ser votado na Câmara dos Deputados após ter sido aprovado sem maiores debates no Senado. É uma peça legal de ampla estrutura, que fixa direitos para os "afro-brasileiros" em várias dimensões da vida social, econômica e cultural. Seu principal objetivo é combater a discriminação racial e as desigualdades históricas que atingem os "afro-brasileiros", determinando que as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado devam ser pautadas pela dimensão racial, através da reparação, compensação e inclusão de suas vítimas, os "afro-brasileiros", bem como pela valorização da diversidade racial.

Mais do que políticas compensatórias de caráter transitório, a aprovação do estatuto significará uma alteração radical nas bases universalistas da Constituição brasileira, uma vez que esse documento legal concebe a "raça" como figura jurídica de direitos a ser contemplada por políticas públicas. Uma intervenção legal dessa natureza deve supor, em primeiro lugar, a existência de uma sociedade na qual os indivíduos se auto-identifiquem através do pertencimento racial.

Ora, se esse não é o caso da sociedade brasileira, que tem evitado a rigidez de classificações étnico-raciais, pode-se afirmar que o estatuto é um instrumento legal que pretende reinventar, nos termos da raça, a nação brasileira.

O estatuto expressa o seguinte raciocínio lógico: desde a escravidão a sociedade brasileira se dividiu em "raças". A "raça branca" dominante, através de discriminação racial sistemática e da omissão do Estado, produziu a exclusão de outra "raça" - os "afrodescendentes" - das oportunidades econômicas, sociais, políticas e culturais. Para que se corrija tal situação, cabe ao Estado, através das suas estruturas jurídicas e institucionais, intervir em todos os níveis da sociedade a fim de garantir justiça e igualdade racial para a "raça" excluída.

Para que seja eficaz a ação do Estado, é necessário delimitar rigidamente as fronteiras raciais, a fim de beneficiar aqueles que de fato seriam os merecedores da reparação ou da justiça racial. Por esse raciocínio, o estatuto torna obrigatória a autoclassificação racial de cada brasileiro em todos os documentos de identificação gerados nos sistemas de ensino, de saúde, de trabalho, de seguridade social e na certidão de nascimento.

Para evitar ambivalências, a declaração compulsória da identidade racial se restringe a duas categorias: os "afrobrasileiros" (pretos e pardos) e os "outros" (supostamente os "brancos").

Definidas as fronteiras raciais, o documento propõe a implementação de programas de ação afirmativa destinados a enfrentar as desigualdades raciais. Na educação, as cotas nas universidades; na cultura, a valorização da cultura "afrodescendente" como monopólio da "raça" negra.

Propõe acesso diferenciado para os "afrodescendentes" no esporte, no lazer, no trabalho, na mídia, na Justiça, no funcionalismo público, nos financiamentos públicos, na contratação pública de serviços e obras, na saúde, através do controle e prevenção de doenças específicas da "raça negra", tornando a "raça" uma entidade coletiva de direitos em qualquer campo da vida social, seja ele público ou privado.

Pergunta-se então: a quem serve a nova sociedade que o estatuto quer edificar? Um Brasil dividido em "raças" promoveria justiça para todos os excluídos das oportunidades econômicas, políticas, sociais e culturais? Seria a promoção da "raça" o melhor antídoto contra o racismo e seus efeitos?

Reclamada no estatuto, a reparação histórica, para ser plausível, deve identificar os atores responsáveis pela desigualdade, no caso os "brancos", que descenderiam dos senhores de escravos. O argumento moral é que, se os antepassados "brancos" perpetraram discriminação e violência racial, seus "herdeiros raciais" devem arcar com essa culpa. Pergunta-se: como um "afro-brasileiro" pobre poderia convencer seu vizinho "branco" pobre de que este é culpado pela situação de pobreza em que ambos se encontram?

É fundamental a elaboração de iniciativas públicas e privadas para o combate da discriminação racial e de seus efeitos no Brasil. Contudo, o bom senso impõe que não é preciso pagar o alto preço do confronto entre dois supostos mundos. Basta atentar para experiências trágicas de promoção racial por decreto: Apartheid na África do Sul e Leis Raciais na Alemanha nazista e nos Estados Unidos.

Por fim, caberá aos nossos representantes no Congresso a responsável decisão sobre o modelo de sociedade que se quer adotar: uma onde o princípio da igualdade dos indivíduos fundamente o Estado de Direito; ou outra na qual a "raça" se torne um princípio absoluto a pautar as ações do governo e as formas de interação dos indivíduos.