Título: Lei prevê igualdade racial por cotas
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Nacional, p. A10

Governo quer aprovar estatuto que institui reserva de vagas para negros até na disputa de licitação pública

Nos próximos dias a Câmara dos Deputados deve votar o Estatuto da Igualdade Racial, conjunto de 85 artigos que integrantes do movimento negro definem como o mais importante texto legal brasileiro sobre o tema desde a Lei Áurea, que aboliu a escravidão, em 1888. Com apoio da bancada do governo, o presidente da Câmara Aldo Rebelo negocia a votação por acordo de lideranças, que permite aprovar projetos sem votos individuais nem encaminhamentos no plenário. A oposição, que tem críticas ao documento, mas teme ser estigmatizada como racista num ambiente político que dá sinais de intolerância, batalha para adiar a votação.

O estatuto define mudanças no mercado de trabalho, na organização das empresas públicas e privadas, no serviço público e na vida cultural. Mantém as cotas para ingresso nas universidades, definidas em outros projetos, e cria cotas demográficas de 20% na cúpula do serviço público, que devem ser ampliadas para fatias coerentes com seu peso na população, podendo se aproximar de 50% na administração federal. Nas licitações envolvendo investimentos públicos, a empresa que tiver um "programa de promoção de igualdade racial em estágio mais avançado" terá prioridade em caso de empate.

O estatuto prevê também a "concessão de incentivos fiscais" para empresas de até 20 empregados, desde que "mantenham uma cota de no mínimo 20% para trabalhadores afro-brasileiros". Os programas de TV e filmes ficam obrigados a recrutar 20% de figurantes e atores de cor negra - regra que também valerá para peças de publicidade financiadas com dinheiro público (veja as mudanças no quadro ao lado).

No Senado, o estatuto foi aprovado por unanimidade, numa cerimônia sem espaço para uma discussão crítica. Muitos senadores votaram convencidos de que se tratava de uma medida boa para o País. Mas a unanimidade, num tema tão polêmico, explica-se por outra razão, segundo o senador Jefferson Péres (PDT-AM): "Acho que se pode falar em covardia. Muita gente que discordava votou a favor porque nessa hora passa pela cabeça o receio de que os adversários vão dizer que você é racista." O próprio Jefferson Péres, que é contra as cotas raciais, ficou em silêncio na hora da votação. Ele explica sua atitude nestes termos: "Não houve uma discussão real na Casa. Ocorreram debates na Comissão de Assuntos Sociais, mas não participo dela."

Na quarta-feira, debate sobre um projeto específico de cotas na educação transformou-se, na Câmara, numa manifestação de ativistas que tentavam intimidar vozes discordantes. "É uma postura de patrulha com a ameaça velada de acusação de racismo", afirma o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP). "Ninguém é favor ou contra essa proposta por ter uma suposta visão racista", diz Goldman. "Vivemos num país onde racismo é crime. O que se questiona é sua eficácia."

O estatuto é fruto de uma cirurgia no projeto original do senador Paulo Paim (PT-RS), revisto e reformulado pelo senador Rodolpho Tourinho (PFL-BA), relator do projeto. O texto final foi negociado no gabinete de Paim com vários ministérios do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A diferença básica envolve o caráter do projeto. A proposta de Paim era mandatória: definia uma política de Estado a ser cumprida pelos governantes. A nova versão é autorizativa: reúne medidas que os governantes podem ou não levar à vida prática. O documento inicial também definia a criação de um fundo de combate ao racismo que envolvia receitas gigantescas, da ordem de R$ 35 bilhões.

O fundo também foi descartado, ganhou a forma de emenda constitucional e será colocado em votação quando e se for considerado oportuno. Essas mudanças levaram os ativistas do movimento negro a realizar manifestações que apóiam o estatuto, mas criticam o fim do fundo.

O documento, porém, mantém as cotas, questionadas por especialistas que defendem o mérito como princípio democrático da vida social. Por sugestão do senador Tourinho, criou-se a cota dentro da cota - que vai reservar metade das vagas para as mulheres negras. O projeto mantém o regime de autoclassificação, que permite a cada um definir-se como negro, pardo ou branco, o que pode comprometer a credibilidade da idéia, como se viu em diversos exames de ingresso na universidade em que estudantes de pele clara se diziam descendentes de escravos. Quem tentar saber, nos Estados Unidos, matriz inspiradora dessa discussão, por que lá não vigoram cotas para homossexuais, ouvirá uma explicação direta: porque permitiriam ao interessado burlar a lei, dissimulando a orientação sexual para colher benefícios.

A dificuldade dos parlamentares para debater questões espinhosas no projeto de estatuto tem sua raiz num fenômeno conhecido: os políticos raramente resistem a uma causa que pode render votos. Em 2002, a Fundação Ford, uma das grandes financiadoras do movimento negro no planeta, patrocinou uma pesquisa em que foram ouvidas mais de 23 mil pessoas no País. O resultado mostra que o apoio da população brasileira a medidas genéricas em benefício da população negra supera a marca dos 70%, um índice muito maior do que o apurado nos Estados Unidos, em levantamento semelhante. A pesquisa tem um limite: não fez perguntas específicas sobre o regime de cotas, que beneficia um determinado grupo com os chamados privilégios compensatórios e prejudica outro, que passa a competir sob condições mais duras - como o estudante branco que só teria competência para disputar as últimas classificações num vestibular.

Mesmo assim, o resultado deixa claro que "a população apóia medidas específicas para a população negra", afirma Alberto de Almeida, que coordenou o estudo. "E isso não é coisa de momento. É uma questão de valor para uma geração." Para o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), "a reivindicação tem muita força". "Não adianta só falar que tudo vai mudar quando o ensino básico ficar melhor."

Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha defendido as cotas durante a campanha presidencial, ministros influentes eram adversários da proposta. Hoje, o governo está fechado com a idéia, integrada ao arsenal da reeleição. O projeto de pedir uma intervenção do Estado nessa matéria é coerente com o programa do PT, mas não combina com a plataforma de defesa dos valores individuais e do mercado, do PFL de Rodolpho Tourinho. "Não se pode assistir ao drama social dos negros brasileiros sem fazer nada", argumenta Tourinho. "Essa é uma forma de distribuir renda e até de retirar cidadãos da marginalidade."

O relator do projeto de estatuto na Câmara, deputado Reinaldo Germano (PP-BA), chegou a Brasília como pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Deixou as causas religiosas para se engajar nas causas contra o racismo. Dobrou de votação de um mandato para outro e já planeja concorrer à prefeitura de Salvador no próximo pleito. Não é mais pastor e só freqüenta a igreja como fiel. Germano tem seu quintal eleitoral na Bahia, assim como o senador Tourinho. Outra liderança importante da Câmara, o deputado Luiz Alberto (PT-SP) também é um dos mais envolvidos na causa negra em Brasília. As estatísticas mostram que de cada dez eleitores baianos, oito são negros.