Título: 'Se energia sobe, o gás deve subir'
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2006, Economia & Negócios, p. B4

Joseph Stiglitz, economistaEntrevistaO presidente Evo Morales, da Bolívia, tem um aliado ilustre para a causa da nacionalização dos hidrocarbonetos - o professor americano Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia. Em La Paz, a convite do governo, Stiglitz acha que a Bolívia tem razão ao colocar o petróleo sob a guarda do Estado: "É uma forma de permitir que a população usufrua dos recursos naturais do país, coisa que nunca aconteceu antes."

Stiglitz,ex-presidente do Banco Mundial e um dos principais críticos das receitas de austeridade e privatização que marcaram o receituário do FMI, também acha que o governo boliviano está certo ao pressionar o Brasil e outros importadores de gás pelo aumento de preço. "Se o preço da energia está subindo em todo mundo, o preço do gás deve subir também", afirma. "Não me parece razoável supor que o Brasil tem o direito de fazer os bolivianos garantirem seu crescimento contra os movimentos do mercado."

Stiglitz teve dois encontros com Evo: "Ele é um político de centro-esquerda, sinceramente preocupado com a desiguldade de seu país, curioso para aprender com erros e acertos de outros países." Na manhã de ontem, ele deu um seminário fechado no Ministério das Relações Exteriores. À tarde, visitou uma universidade num subúrbio de La Paz. Entre um compromisso e outro, o professor da Universidade de Columbia, Nova York, deu a seguinte entrevista:

Como o senhor avalia a nacionalização dos hidrocarbonetos?

A melhor forma de discutir essa questão é lembrar que, de alguns anos para cá, o valor dos recursos naturais, especialmente da energia, triplicaram. Eu pergunto: a Bolívia, que tem imensos recursos naturais, está tirando proveito disso? Não. Então é correto que tente refazer os contratos desse negócio. Na década de 70, no boom do petróleo, os lucros das empresas americanas foram para as alturas. O governo mexeu nas regras e aumentou os impostos.

Mas entre Brasil e Bolívia existem contratos assinados.

Vamos imaginar que, um dia, eu vendo a ponte do Brooklin para você. Aí, você resolve cobrar pedágio e ganha muito dinheiro. Como não era isso que estava combinado, eu tomo a ponte de volta. Por quê? Porque o pedágio não estava autorizado, nem tinha sido aprovado pelo Congresso. Aí você argumenta que era amigo do prefeito, que tinha certas combinações com ele e diz que não deve mudar nada...

Mas os contratos não têm valor?

Numa hora como esta, o segredo é a pior solução e nada mais útil do que a transparência. Vamos abrir os contratos, ver o volume de investimentos, examinar o retorno e ver o que se deve fazer.

O governo boliviano diz que as multinacionais têm retorno de 30% a 40% na exploração do gás...

Se for verdade, é demasiado. A energia integra a atividade econômica regulamentada. Nos Estados Unidos, aplica-se uma regra que define "uma taxa adequada de retorno".

O que seria uma taxa adequada de retorno nesse caso?

Seria alguma coisa entre 7% e 10%. Você poderia até admitir um outro modelo de negócio, onde a empresa funciona a portas fechadas por um determinado período, ganha muito e depois vai embora. Aí você pode pensar num retorno de 30% ao ano, para a empresa ganhar 120% em quatro anos. Mas a longo prazo você deve pensar em taxas menores.

Por que o senhor diz que a Bolívia tem razão em querer um aumento no preço do gás?

O petróleo subiu no mundo inteiro e o gás precisa acompanhar isso. Estamos falando de energia calórica e não podemos ter uma distância tão grande entre os preços da energia gerada pelo petróleo e o da energia gerada pelo gás.

Mas isso pode prejudicar o Brasil.

O Brasil tem o mais inovador programa de energia do planeta. O governo Lula fez um bom trabalho nessa área. O Brasil está ficando independente em matéria de energia. Mas os brasileiros precisam entender que não são os bolivianos que querem aumentar o preço do gás. É a alta do petróleo. Você acha moralmente justificável que um país como a Bolívia dê garantias ao Brasil contra as oscilações do mercado?

A nacionalização foi muito criticada nos últimos dias, quando Evo Morales foi à Europa. Por quê?

Estas críticas são esperadas. Nós sabemos a força das empresas de petróleo, os interesses que mobilizam.

Mas alguns governos, como o da Bélgica, fizeram ataques duríssimos...

Compreendo a posição da Bélgica em razão de seu passado colonial, um dos piores da história. Os belgas não gostam que se trate de qualquer coisa que lembre o colonialismo porque não querem falar sobre o Congo.

Mas o passado colonial não explica todas as críticas...

É verdade. Alguns setores muito conservadores falaram que a nacionalização interferiu no direito de propriedade, que é mais complexo do que se imagina. Eu tenho um produto, que comprei de uma pessoa que tinha roubado esse produto. Quem é o legítimo proprietário? Isso se complica quando você aplica essa discussão a determinados países, com uma história colonial perversa. A Suprema Corte Americana tem uma sentença em que reconhece que a propriedade não é um direito absoluto e que um governo tem o direito de tomar posse do patrimônio de alguém - desde que pague uma justa indenização.

Muitas pessoas dizem que o governo de Evo Morales tem um perfil ideológico bastante esquerdista...

Estive duas vezes com o presidente. A impressão é de um político de centro-esquerda, com preocupações com o meio ambiente que também vejo na esquerda européia. Ele fez perguntas, é muito curioso. Um político de esquerda linha dura não faz perguntas. Acha que tem resposta para tudo.

O sr. acha que a nacionalização do gás garante o progresso para a Bolívia?

Não. Primeiro, é preciso saber como o dinheiro vai ser gasto. Depois, o país tem muitos outros problemas. A infra-estrutura é ruim. Os bolivianos investiram na soja, mas são prejudicados pelo governo americano, que subsidia seus agricultores. Isso atrapalha muito.