Título: Incentivo cultural
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Notas e Informações, p. A3

Quatro anos após ter feito da mudança do sistema de incentivos fiscais à cultura um dos principais temas de sua campanha eleitoral, o presidente Lula começa a cumprir sua promessa. Mas, em vez de apresentar o projeto de uma legislação inovadora, como afirmou no plano de governo então apresentado, ele se limitou a divulgar um projeto de decreto que faz alterações pontuais na Lei Rouanet. Em vigor há 15 anos, ela foi concebida com o objetivo de estimular pessoas físicas e jurídicas a destinar parte de seu Imposto de Renda ao financiamento de projetos culturais brasileiros.

Em 2005, a Lei Rouanet propiciou a captação de R$ 677 milhões em incentivos, que foram disputados por 2.383 projetos. Os críticos dessa lei afirmam que ela institucionalizou o mecenato, sob a forma de patrocínios nas áreas de música, artes plásticas, artes cênicas e literatura. Segundo eles, ao permitir que empresas e bancos utilizassem os incentivos para criar seus próprios institutos culturais, a lei se desfigurou, convertendo-se em mero instrumento para o marketing de empresas particulares com dinheiro público, vindo de renúncia fiscal.

Além disso, em vez de financiar projetos culturais de pequenos produtores independentes, a Lei Rouanet beneficiou empresários do setor de diversões e lazer, permitindo-lhes obter incentivos para projetos meramente comerciais e altamente rentáveis. O caso considerado exemplar é o da Companhia Interamericana de Entretenimento (CIE), uma empresa de origem mexicana que promove o musical O Fantasma da Ópera e está trazendo para o Brasil, a partir de agosto, a trupe canadense Cirque du Soleil.

Lançado em 2005, e cobrando ingressos entre R$ 60 e R$ 200, o musical alcançou tanto sucesso que a CIE prorrogou a temporada até 2007, tendo sido autorizada pelo Ministério da Cultura (Minc) a captar mais R$ 5,1 milhões em incentivos fiscais. Para o Cirque du Soleil, outra iniciativa comercial que também nada tem a ver com a cultura brasileira, a empresa foi autorizada a captar R$ 9,4 milhões em incentivos. Além de preços nada populares, que variam entre R$ 50 e R$ 370, têm preferência na compra dos ingressos desse espetáculo os clientes "private" de um grande banco particular.

É normal que nomes e marcas de empresas privadas sejam associados a produções culturais, como estratégia de marketing, enfatizam os críticos da Lei Rouanet. Mas esse investimento deveria vir das próprias empresas, e não de renúncia fiscal do poder público. Além disso, projetos comerciais não precisam de dinheiro público para serem viáveis. Com isso, sobrariam recursos para projetos mais modestos dos pequenos produtores locais e estaduais.

Essas críticas são sensatas e procedentes. Acolhendo-as, o projeto de decreto que o Minc divulgou esta semana proíbe bancos e empresas de usar incentivos fiscais para financiar seus institutos culturais. Ele também acaba com a remuneração do "captador de recursos", o intermediário que sai atrás dos patrocinadores, cobrando 10% do valor dos projetos. E, sob justificativa de estimular a diversidade, a circulação e a gratuidade da cultura em todo o País, o projeto exige dos produtores culturais um "plano de acesso" de toda a população às obras e espetáculos patrocinados.

Mas o projeto contém falhas e não foi bem recebido por partes interessadas. Os pequenos produtores, em tese beneficiários das mudanças na Lei Rouanet, temem continuar sem acesso às empresas. Eles alegam que, sem o apoio dos captadores de recursos, não saberão encaminhar seus projetos. Já os consultores de patrocínio lembram o risco de o decreto colidir com a Lei do Audiovisual, que também é mantida com base em renúncia fiscal.

Como se vê, mesmo com alterações limitadas na Lei Rouanet, o governo voltou a se atrapalhar. E a equipe do Minc, a mesma que propôs a criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), cujo objetivo era controlar ideologicamente a produção cultural, volta a demonstrar que não consegue concretizar a ambiciosa política cultural prometida por Lula.