Título: Chávez complica o jogo na região
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2006, Nacional, p. B3

Presidente venezuelano usa sua influência para polarizar com os Estados Unidos e cria novos conflitos

A desenvoltura cada vez maior do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, na política sul-americana complicou ainda mais a estratégia brasileira de liderar a integração da região. Chávez , que é a figura principal da crescente onda populista na América do Sul, está jogando toda a sua influência para criar uma polarização ideológica com os Estados Unidos, muito mais profunda e estridente do que a moderada oposição que levou o Brasil a torpedear o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

"É um momento dramático para a diplomacia brasileira", diz o economista Marcelo de Paiva Abreu, da PUC-Rio, especialista em relações internacionais e política comercial. Ele observa que, depois dos fracos e dúbios resultados das tentativas do Itamaraty de aproximação com potências emergentes como a China e a Índia, restava à política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva o projeto sul-americano, que agora faz água por todos os lados.

Para Paiva Abreu, um dos equívocos da estratégia brasileira foi errar a mão com Chávez: "Uma coisa é assegurar a democracia na Venezuela e, com isto, ter uma relação privilegiada, e outra é esta associação muito mais estreita, levando a projetos faraônicos e irrealistas", ele diz, referindo-se ao gasoduto para ligar a Venezuela à Argentina. O economista acha que os laços do Brasil com uma figura polêmica como Chávez enfraquecem o País nas negociações com as grandes potências globais.

O presidente venezuelano, por sua vez, tem um estilo político que se alimenta da divergência e da hostilidade, e no qual definir inimigos é tão importante quanto estabelecer alianças. Dessa forma, está criando conflitos que naturalmente não ajudam o ambicioso projeto da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), tão acalentado pelo governo Lula.

Chávez reagiu da forma mais drástica possível aos acordos comerciais que estão sendo negociados pelos Estados Unidos com a Colômbia e o Peru, anunciando que a Venezuela iria abandonar a Comunidade Andina de Nações (CAN). Pouco depois, ele disse que poderia reconsiderar a decisão se os dois países voltassem atrás.

Com as declarações de apoio à atitude de Chávez por parte do presidente da Bolívia (que também está na CAN), Evo Morales, o Peru partiu para o contra-ataque com toda a virulência. O presidente Alejandro Toledo, em melancólico e impopular final de mandato, disse que Chávez e Morales estavam fazendo "chantagem". E o candidato líder nas pesquisas do segundo turno das eleições presidenciais, Alan García, subiu ainda mais o tom, acusando o presidente venezuelano de ser "sem-vergonha".

O curioso, porém, é que, em razão da ideologia de supervalorização dos recursos naturais como base da soberania nacional, abraçada tanto por Chávez como por Morales, a Venezuela e a Bolívia já estão se desentendendo na estratégica questão do gás natural. A Bolívia é contra o gasoduto Venezuela-Argentina, porque julga que ele vai tirar a sua condição de fornecedora quase exclusiva do Cone Sul.

A entrada da Venezuela no Mercosul - que politicamente já parece consumada, apesar de as negociações comerciais propriamente ditas mal terem começado - pode trazer ainda mais problemas para o bloco, na visão de Marcos S. Jank, professor de Economia da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).

Ele acha que a Venezuela pode colocar restrições aos produtos agrícolas brasileiros e bloquear qualquer tentativa de acordo com os Estados Unidos: "A rejeição mútua (entre Venezuela e EUA) é tremenda."

Os Estados Unidos aproveitam a fragilidade das iniciativas de integração da América do Sul e avançam na região com uma série de acordos bilaterais, já em vigor, como no Chile; em negociação, como a Colômbia e o Peru; ou em cogitação, no caso uruguaio. Jank observa que os acordos americanos são muito mais profundos do que aqueles dos quais o Brasil participa (na região, com Chile, Bolívia, associados ao Mercosul e CAN) e pioram a situação dos exportadores brasileiros tanto no mercado americano quanto nos dos parceiros dos Estados Unidos na América Latina.

Para o embaixador José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), "o problema da atual política externa brasileira é querer fazer tudo ao mesmo tempo, dispersando e enfraquecendo os esforços".

Botafogo acha que o foco na América do Sul deveria retornar para o Mercosul, que considera recuperável. Ele recomenda paciência com as reações protecionistas argentinas.

Mas o embaixador lamenta o fato de que o Brasil não consegue mediar o conflito entre a Argentina e o Uruguai, em razão das fábricas de celulose que estão sendo tocadas no segundo país, às margens do Rio Uruguai, e nas quais os argentinos alegam ver um risco ambiental. Para ele, "quanto mais o conflito se arrasta, maior o efeito sobre a imagem do Brasil, que parece não ser capaz de influenciar nem uma contenda entre os seus sócios."