Título: Comércio de órgãos
Autor: Silvano Raia
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Recentemente, revistas médicas conceituadas e publicações leigas de grande circulação vêm defendendo o comércio de órgãos e até sugerem sua regulamentação pelo Estado. Justificam sua posição com argumentos relacionados a apenas alguns aspectos pragmáticos da questão, sem considerar o contexto ético, moral e de justiça que constitui a base dos transplantes de órgãos. Valem-se de três argumentos principais:

O princípio da autonomia garante ao doador o direito de usar seu corpo como desejar;

seria melhor aceitar e regulamentar a venda, já que ocorre aos milhares em muitos países, apesar de proibida;

os órgãos adicionais provenientes do comércio legalizado aumentariam o número de transplantes, diminuindo a mortalidade na lista de espera.

Entretanto, uma análise abrangente mostra que a validade desses argumentos é muito questionável.

O livre-arbítrio só pode ser exercido desde que esclarecido, livre e sem causar prejuízo a terceiros. Que grau de esclarecimento sobre esse tema é possível transmitir a um sertanejo do agreste pernambucano ou a uma colhedora de chá do interior da Índia, que, se muito, são apenas alfabetizados? De que liberdade efetiva para decidir dispõem esses eventuais doadores, incapazes de avaliar o risco da retirada do órgão que pretendem vender e de suas conseqüências futuras? O uso do livre-arbítrio é sempre proibido quando prejudica o interesse de terceiros. Vejam-se os casos da eutanásia, da venda de drogas e da exploração da prostituição. No caso da venda de órgãos, toda a sociedade é prejudicada. Os efeitos nocivos sobre ela são exercidos por uma série de atos e práticas desumanos. Criam um tráfico que segue a rota moderna do capital. Os receptores são geralmente dos EUA, da Inglaterra, de Israel e do Japão, enquanto os doadores provêem de áreas subdesenvolvidas do Iraque, da Índia, do Egito, da Turquia, da Estônia, da Iugoslávia, da Romênia, da Geórgia, do Peru, das Filipinas e, infelizmente, também do Brasil. Receptores dos países ricos adquirem partes do corpo de doadores de países pobres. Esse abuso do poder econômico fere o princípio da eqüidade, que impede qualquer tipo de privilégio, já que os órgãos de cadáveres provêm de doadores de todas as camadas sociais. O comércio de órgãos estimula o mercado negro e permite um grande lucro a intermediários aproveitadores. Antes da Guerra do Golfo, os doadores de rim no Iraque recebiam US$ 500, enquanto o transplante do mesmo rim custava US$ 200 mil aos receptores dos EUA, da Inglaterra ou da África do Sul. Os efeitos sociais de todos esses malfeitos caracterizam o prejuízo a terceiros que impede o exercício de autonomia para a venda de órgãos.

Vários autores, em 2005 e 2006, como Robert Berman, argumentam que a questão não é mais de permitir ou não a comercialização de órgãos, mas sim de regulamentá-la ou não, já que ocorre de qualquer forma. Citam que, dada a dificuldade de obter enxertos de cadáveres em Israel, mais de 300 pacientes de um único hospital em Tel-Aviv viajaram nos últimos anos para comprar um rim e realizar seu transplante no exterior. Não aceitamos essa argumentação. A pedofilia, o estupro e outros crimes hediondos continuam ocorrendo em todo o mundo, apesar de ilegais, e nem por isso devem ser regulamentados.

Todos desejamos o aumento de enxertos, mas não por meio de uma sistemática desumana, antiética e imoral. Inútil repetir que os fins não justificam os meios. Além disso, deve-se considerar que a legalização do comércio exerceria um efeito negativo muito importante na captação de órgãos. Inibiria o consentimento familiar altruístico para aproveitamento de enxertos de cadáver, uma vez que seria impossível evitar o receio de que interesses financeiros passassem a interferir também nesse tipo de doação.

O peso desses contra-argumentos é demonstrado pelo fato de que em todos os países, mesmo com anuência expressa do doador, a venda de órgãos é considerada ilegal. Essa posição é adotada também pelas sociedades médicas internacionais, que, sem exceção, consideram essa prática antiética e imoral. Essa condenação é compartilhada pela Organização Mundial da Saúde, pela Igreja Católica, pela Igreja Ortodoxa grega e pela Igreja da Escócia.

Define-se, assim, a oposição entre um enfoque pragmático e outro conceitual. Alguns autores a identificam apenas como uma divergência entre a bioética anglo-saxã e as demais. Mas, na realidade, não se trata apenas disso. Trata-se de mais uma tentativa de expansão da cultura monetarista que endossa e justifica a globalização atual. Nesse contexto, é interessante notar a posição de dois laureados com o Prêmio Nobel. O primeiro, Gary S. Becker, Nobel de Economia, deu-se ao trabalho de calcular o valor de um enxerto, baseando-se no risco de morte da cirurgia para sua retirada, no valor de uma vida humana atribuído em ações judiciais recentes e em outras variáveis. Estima em US$ 45 mil o valor de um rim vendido por um doador americano. O segundo, Jean Dausset, Nobel de Medicina, mostrou num programa da televisão francesa uma cena trágica, na Índia, de doadores portadores de hanseníase vendendo um rim por poucas centenas de dólares em leilão organizado por intermediários estrangeiros. Sugeriu a criação de uma agência internacional para proibição dessa prática criminosa nos moldes da comissão para controle da energia atômica. Atualmente, a grande maioria da comunidade transplantadora e da sociedade em geral não tem dúvidas sobre qual dos laureados contribuiu mais para o progresso da humanidade. Essa maioria aprendeu com o comércio de órgãos que a interpretação teórica da autonomia e do livre-arbítrio exige muita isenção, discernimento e sabedoria. Na ausência desse cuidado, é possível que, na prática, essa liberdade e esse direito se voltem contra os interesses dos indivíduos ou dos grupos que se deseja proteger.

Silvano Raia é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP)