Título: Sabem e não agem?!
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2006, Notas e Informações, p. A3

A divulgação parcial do depoimento secreto que deram na quarta-feira à CPI do Tráfico de Armas, o diretor do Departamento Estadual de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), Godofredo Bittencourt Filho, e o delegado Ruy Ferraz Fontes, deixou surpreendentemente claro pelo menos um ponto no vasto e sangrento confronto entre as forças de segurança do Estado e o crime organizado. Ao contrário do que muitos supunham, não foi a deficiência dos serviços policiais de inteligência que levou a esse trágico estado de coisas, visto que os órgãos incumbidos da segurança pública acompanharam, em pormenores, o crescimento, o aperfeiçoamento organizacional e a sofisticação do modus operandi de facções criminosas, como o PCC. Na verdade, aqueles depoentes deram informações sobre o funcionamento da entidade delinqüencial com uma riqueza de detalhes, de fato, impressionante.

O diretor e o delegado admitiram que o PCC se espalhou pelo País por um erro cometido pelo governo de São Paulo, que "transferiu os bandidos mais perigosos" do grupo para prisões de outros Estados, plantando assim a "sementinha" da organização pelo País afora. Confessou Ferraz que "está muito difícil desmontar essa estrutura". Vejamos que estrutura é esta: o PCC é composto de um formidável exército de 140 mil filiados nos presídios e mais 500 mil (ou mais) do lado de fora, incluindo os parentes. Arrecada do tráfico em diversos pontos-de-venda de drogas, R$ 550,00 de seus sócios ou associados que estão na rua e R$ 50,00 de quem está na cadeia. Segundo dados de oito meses atrás (obtidos com a prisão de seu tesoureiro) sua receita bruta mensal seria de R$ 750 mil - parte destinada a empréstimos e financiamento de assaltos de grupos filiados ao "partido".

A contabilidade da facção criminosa é perfeita, segundo aqueles agentes da polícia: nela estão registrados, por exemplo, os empréstimos, o roubo a que se destinam, o valor da quitação destes - com juros e correção monetária - e mais, o pagamento dos ônibus para as visitas, o custeio das armas compradas (com especificação da arma e do nome de quem a detém), etc. É por isso que o delegado demonstra o maior desânimo: "A organização é muito séria mesmo e a tendência é crescer, porque a gente acaba não tendo como, não conseguindo atingir o objetivo principal, que é desmontá-la."

Explicando a estrutura da organização do PCC, o delegado afirmou que seu principal líder, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, elegeu um representante em cada região de São Paulo, passando a ter poder sobre ela. A capital foi dividida em quatro áreas de influência, numa descentralização que dá poderes ao representante para decidir sobre tudo o que ocorre em sua área. Determina, por exemplo, de quem é ou como vão ser comercializadas as drogas, qual a parte que cabe ao PCC em cada crime, incumbe seus representantes da arrecadação e da administração da tesouraria (para não facilitar o trabalho da polícia em perseguir uma tesouraria única, como antes).

O diretor do Deic afirmou que mais de 70% das extorsões mediante seqüestro, em São Paulo, são comandadas da cadeia, pelo celular. "Nós temos uma luta muito grande com as operadoras para que isso (uso de celulares) não venha a ocorrer. Não estamos conseguindo êxito nisso." Disse ele que os aparelhos chegam às penitenciárias pelos advogados e parentes dos presos - e em outro tópico afiança que são os advogados (e não os celulares) o elo principal de transmissão de informações, nas operações comandadas pela facção criminosa.

O que mais causa perplexidade é o sentimento de impotência revelado pelas autoridades incumbidas de combater o crime organizado, pois, apesar de tudo (ou quase tudo) saberem sobre o funcionamento deste - o que desmente a hipótese de o problema maior ser a deficiência do setor da inteligência policial - , algo misterioso parece impedi-los de agir, de traçar planos consistentes de desmantelamento do estado-maior das quadrilhas. Falta de recursos humanos, materiais, tecnológicos? Falta de competência administrativa de comando? Falta da famosa "vontade política"? Ou falta de tudo isso e muito mais? A descoberta das verdadeiras carências nessa área é condição para evitar novas tragédias.