Título: Estabilidade e renda
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/05/2006, Notas & Informações, p. A3

A lguns dos principais dirigentes e intelectuais do PT costumam desprezar, por "ortodoxos", mesmo aqueles que, fazendo parte do governo Lula ou o apoiando, se esforçam para assegurar a estabilidade econômica. É a excessiva preocupação desses "ortodoxos" com a inflação, dizem esses dirigentes e intelectuais petistas, que impede o crescimento mais rápido da economia e a redução das desigualdades sociais.

Num país que durante tanto tempo se acostumou a conviver com a alta generalizada dos preços, defender "um pouquinho de inflação" em nome de uma "sociedade mais justa" não chega a causar espanto. Mas deveria. Nas últimas décadas, nada foi mais socialmente cruel do que a inflação. É isso que deixa óbvio a reportagem de Fernando Dantas publicada na quinta-feira passada pelo Estado, na qual se mostra, com base em estudo do Banco Mundial (Bird), que a concentração de renda no País diminuiu entre 1981 e 2004.

O gráfico que ilustra a reportagem mostra, com clareza cristalina, como a alta da inflação aumenta a concentração da renda e como sua redução melhora o quadro. No Brasil, as pessoas de renda média e alta encontraram meios para proteger melhor seu patrimônio do desgaste inflacionário. Mas a inflação corrói de maneira aguda a renda dos que ganham menos. Por isso, mesmo quando decorrente de medidas artificiais, que por isso têm efeitos passageiros, a queda brusca da inflação melhora a distribuição de renda.

Em 1986, com o Plano Cruzado, a desigualdade diminuiu. Mas, com o fracasso previsível do plano, que distorceu os mecanismos de preços e desorganizou a economia, a situação voltou a piorar. A deterioração foi acentuada, e atingiu o pior resultado do período em 1989, quando os preços subiam mais de 2.000% ao ano. Em 1990, nova intervenção violenta do governo na economia, por meio do Plano Collor, produziu resultados tão espetaculares quando efêmeros e, em 1992, se registrou notória piora.

Embora o ano de 1994, o do início do Plano Real, não conste do gráfico, foi nele que começou uma etapa consistente de melhora, que persiste até hoje. O Plano Real produziu uma desconcentração gradual, mas persistente, da renda.

O estudo que serviu de tema para a reportagem - Ascensão e queda da desigualdade brasileira: 1981-2004, de Francisco H. G. Ferreira, Phillippe G. Leite e Julie A. Litchfield, disponível na página do Bird na internet - tomou como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE. O trabalho utiliza como medida de desigualdade o coeficiente de Gini. Seus autores concluem que, da redução de 13% desse coeficiente entre 1993 e 2004, 5,3 pontos porcentuais podem ser atribuídos à redução da diferença de renda entre os mais e os menos instruídos, e o restante à redução das diferenças raciais e à menor discrepância de renda entre as populações urbana e rural.

É importante observar que uma análise como a do Bird tem mais consistência quando se refere a períodos de relativa estabilidade monetária e econômica. Isso porque, entre outras deformações causadas pela inflação alta, está a de tornar menos eficazes as políticas públicas, por mais bem administradas que sejam, e de turvar o ambiente econômico e social, tornando muito mais difícil seu estudo.

Outro ponto que merece destaque no trabalho é o fato de mostrar que o avanço do Brasil nos últimos anos está longe de ser espetacular. O número de pobres, segundo o estudo, caiu de 29,6% da população em 1981 para 22,2% em 2004. Na Tailândia, entre 1975 e 1992, diminuiu de 41,8% para 15,8% da população e, na Indonésia, de 64,3% em 1975 para 11,4% em 1995.

Se se desse ao trabalho de ler a reportagem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva provavelmente concluiria que, também com relação à redução da desigualdade social, seu governo é melhor do que o de seu antecessor imediato. A situação em 2004 é, de fato, melhor do que a de 2002, último ano do governo FHC. Mas a melhora não foi fruto de ações do atual governo, e sim da estabilidade monetária, que começou com o Plano Real, que muitos petistas ainda insistem em criticar.