Título: Rui, agente, refém do PCC
Autor: Mônica Manir
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2006, Metrópole, p. C7

No sábado, 13, os agentes penitenciários receberam a recomendação de deixar os pavilhões rebelados e recuar. Rui Carlos Rodrigues Pereira avançou. Solidário com um colega tomado como refém, ofereceuse para ocupar seu lugar na rebelião que virou a Penitenciária 1 de Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo. Passou quatro horas na mão dos presos, junto com outro funcionário e mais 530 visitantes. Nesse meio tempo, pregou os olhos na televisão da cela, em volume altíssimo, 'para dispersar os pensamentos'. Mal refeito do trauma, ele tentou pôr ordem nas idéias neste depoimento dado na sede do Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo.

'Trabalhei normalmente na sexta-feira, das 7 às 19 horas, sem perceber nada de estranho no comportamento dos presos. Tudo parecia tranqüilo, apesar da megablitz, da transferência de líderes do PCC para Presidente Venceslau. Sabíamos que aquilo seria uma afronta à organização e repercutiria de alguma forma, mas não imaginávamos tamanha violência.

No sábado, não liguei a televisão nem o rádio. Estava de folga e só fui saber das rebeliões por um amigo, no final da tarde. Na TV falavam em Franco da Rocha, Franco da Rocha, mas não diziam qual unidade tinha virado. Lá são quatro prédios de regime fechado. Quando confirmei pela internet que tinha sido a P1, liguei para a penitenciária. Falaram que dois funcionários estavam reféns, um deles o chefe de plantão, já ameaçado pelos presos, que criticavam sua postura mais rígida.

Mal dormi pensando nos colegas. No domingo, às 7 horas, era meu plantão e fui para lá. Em frente da penitenciária, nenhuma viatura de polícia. Não demorou para ouvir tiros na P2, que fica a uns 500 metros da P1 e tinha acabado de virar também. Passei pela portaria, depois pelo portão da muralha, pelo detector de metais e então pelo portão de chapa, de uns 4 metros de altura. Foi quando vi uma barricada feita com os armários da vigilância e com mesas, armários e carteiras das salas de aula. Estava bem alta, encostada nos portões, de forma que ficava impossível ver o que acontecia lá dentro. Os presos subiram na barricada para conversar com a direção. Não estavam encapuzados e pediam para o diretor entrar em contato com outras unidades, onde haveria preso baleado. Diziam para interceder porque não estavam dando assistência. Apesar de não usarem celular na nossa frente, só podiam ter obtido essa informação com o aparelho.

Também pediam para liberar as visitas. Eram 530 delas, a maioria mulheres e crianças. Tinham entrado às 8 horas de sábado, ou seja, já fazia quase 24 horas que estavam no pátio. De certa forma, eram a nossa garantia na negociação. A integridade dos funcionários estaria resguardada com a presença das famílias. Para os presos, a entrada do choque, normalmente ruim, seria horrível naquela situação. Depois de muita insistência, nos deixaram ver rapidamente os reféns. Pareciam apavorados, em especial o chefe de plantão. Um pouco depois, a esposa dele, que tem problemas de saúde, ligou transtornada, perguntando do marido. Viu que estavam matando agente penitenciário na rua. Por que não fariam o mesmo na cadeia? O diretor chamou novamente os presos e insistiu na soltura do funcionário. Acabaram aceitando a troca, mas exigiam outro chefe de plantão ou um diretor. Diante da negativa, concordaram com um funcionário que ficasse com eles no dia-a-dia.

Um olhava para o outro e ninguém tinha coragem. Aí eu disse: ´Eu vou´. Fiquei pensando na família dele, no risco que corria. O diretor perguntou se eu tinha certeza e confirmei. Eu ficaria próximo à barricada, onde os demais funcionários pudessem me ver. Saíram algumas visitas que estavam passando mal, umas senhoras de idade, tremendo e chorando bastante. Logo em seguida, vieram os presos com o chefe. Estava branco, pálido. Dei um abraço nele, que mal reagiu. Falei para dar um abraço na mulher dele e na filha. Ele me desejou boa sorte. Como combinado, fiquei próximo da barricada. Mas, coisa de 15 minutos, os presos me levaram para o fundo. Disseram ´o senhor vai comigo, a gente não quer machucar vocês. A nossa briga é outra´. Todos, mesmo os presos mais velhos, me chamam de senhor, apesar dos meus 28 anos.

Há uma média de 1.300 presos na unidade, distribuídos em três raios, ou pavilhões, cada um com dois pavimentos. A cela, feita para seis detentos, abriga 10, 11. Somos 10 agentes para toda essa população. Nosso lugar é em gaiolas internas ao raio, também chamadas de viúvas ou ratoeiras, ou então na galeria, um longo corredor que liga os pavilhões. Normalmente os presos recebem o café da manhã na cela. Às 8 horas saem para o pátio, às 11 são recolhidos para o almoço, às 13 voltam para o banho de sol e às 16 retornam às celas, de onde só saem no dia seguinte. Durante a rebelião, estavam todos soltos. Algumas celas foram arrombadas e os familiares circulavam pelo pátio. A diferença em relação a um dia tradicional de visita é que os presos circulavam também na galeria. Uns dez me acompanharam até a gaiola que dá acesso aos raios 2 e 3. Então um me mandou que segurasse no seu braço, abaixasse a cabeça e fosse para o raio 3, sem olhar para lado algum. Tomei um susto, não entendi o porquê daquilo.

Entrei na cela, onde estava o outro funcionário. Ele fumava bastante, sentado numa das camas. São camas de cimento, também chamadas de pedra, burra, ´jega´. Sentei ao lado dele, que não estava amarrado nem nada. Improvisaram uma cortina com um lençol na porta, pela qual dava para vislumbrar os vultos lá fora. Uns cinco presos ficaram por ali. Perguntavam como estava a rua, se eu sabia do número de mortos. Ofereciam suco, bolacha, cigarro. ´Se quiser comer qualquer coisa, pode falar que a gente providencia´, diziam.

Eu não queria nem água, nem nada. Apesar da aparente tranqüilidade, não dá para ficar calmo. Quem trabalha no sistema prisional sabe que numa hora está tudo bem, na outra pode acontecer algo grave. Se o choque invadisse, eu poderia ser alvejado, esfaqueado, apesar de não ter visto nenhum estilete ou coisa parecida. Eles não entrariam numa rebelião sem arma alguma. Eu evitava pensar nos meus dois filhos, nos meus pais. Só olhava a televisão, ligada num volume bem alto, para dispersar os pensamentos. Em toda cela há uma TV e um rádio. Era 1 hora da tarde e parecia ser o auge dos ataques: 25 unidades, 30 unidades rebeladas. Aquilo não mostrava um fim. A TV estimulava ainda mais o pânico, mesmo entre os presos. Começou a bater um desespero, minha mão suava, pensei: ´Que besteira eu fui fazer! A gente não vai sair daqui.´

Pela movimentação, a gente desconfia que um detento é do PCC, mas dificilmente algum assume isso. Parecia, naquele momento, que era uma ordem da facção exigindo solidariedade. Afinal, ninguém reivindicou nada. Falei para o outro funcionário que, pelo andar da carruagem, a gente iria dormir aquela noite na prisão. Mas, lá pelas 16, quase 17 horas, a comida, ou melhor, a falta dela, fez diferença. A cozinha da P1 está em reforma e, portanto, desativada. Recebemos marmitex, que foram cancelados com a rebelião. É uma tática de guerra e, nessa linha de raciocínio, posteriormente desligariam luz e água.

Fazia mais de 30 horas que os presidiários e as famílias estavam sem comer e isso pegou. Às 17 horas, um preso entrou na cela avisando que, quando saísse a última visita da unidade, sairíamos junto. Foi o que aconteceu. Eles nos acompanharam até próximo da barricada, devolveram os rádios que tomaram dos funcionários e voltaram para as próprias celas. Ainda retornamos para trancá-los.

Fiz contagem de duas alas, uma contagem nominal, num papel em branco, porque as fichas tinham desaparecido na confusão. Essas fichas contêm o nome do preso, o número de matrícula, o nome dos pais, a procedência, local e data de nascimento. Aparentemente, não fugiu ninguém, mesmo porque a gente conhece os principais.

São presos com condenação mais alta, resgatáveis ou passíveis de fuga. Quando voltamos para trancar as celas, descobrimos um buraco que eles tinham iniciado no pátio. Era isso que os detentos não queriam que eu visse. Passaram a noite inteira cavando, provavelmente com as sobras de carteiras e mesas que quebraram.

Saí às 19 horas, como sairia no meu plantão, mas sob profundo estresse. Lá fora, de novo, nenhuma viatura policial.Agentes sendo mortos nas ruas e nós sem proteção alguma. Depois de todo esse massacre, só se lembraram da polícia civil e militar, mas os presos lembraram da gente. Não usamos arma, apesar de uma lei federal nos dar o direito de ter o porte fora da cadeia. No entanto, ela depende de regulamentação do nosso secretário (Nagashi Furukawa), que não vê necessidade disso. Faria diferença ter arma diante de um ataque? Bom, é bem mais complicado atacar alguém que você sabe que pode reagir. Não sei lidar com uma arma, teria de aprender. Tenho evitado sair de casa nestes dias.

Na hora em que me ofereci como refém, não pensei nas conseqüências. Pensei na família dele, não na minha. Não faria isso de novo. Em outubro, fui refém em outra penitenciária de Franco da Rocha, numa tentativa de fuga. Coisa rápida, no espaço de uma hora, com uma arma que não consegui identificar se era de verdade ou não. Não sei o que foi pior. Cada situação é diferente. Experiência como refém, não existe isso.'