Título: O amigo da onça
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Nacional, p. A6

Morales faz o papel dele; o governo brasileiro é que se deixou docemente enganar

Evo Morales, assim como Hugo Chávez, desempenha o papel dele. Líderes populistas, representações vivas do atraso, ambos fazem qualquer coisa para sustentar os personagens; rompem contratos, não respeitam acordos, dão asas a quaisquer pirotecnias que lhes pareçam politicamente convenientes, não são, enfim, confiáveis.

Isso qualquer pessoa medianamente informada e minimamente dotada de discernimento percebe. Inclusive porque nenhum dos passadistas em voga na América Latina esconde o jogo, e os condutores da nova diplomacia nacional são seus interlocutores freqüentes.

Portanto, não se pode dizer que a surpresa do governo brasileiro com a expropriação de empresas estrangeiras de exploração, produção e comercialização de gás e petróleo, sendo a maior delas a Petrobrás, pelo governo Evo Morales, seja fruto de falta de informação. De discernimento, certamente.

A despeito dos vários e repetidos sinais de que Morales estava prestes a partir para a ignorância a fim de recuperar popularidade interna a título de cumprir uma de suas promessas de campanha, o governo brasileiro preferiu prender-se ao amadorismo ideológico que há três anos e meio tomou conta do Itamaraty em substituição ao tradicional profissionalismo da diplomacia brasileira.

Deixou-se doce e intencionalmente enganar - acreditando-se, talvez, na posição de fingidor -, privilegiando as relações de suposta amizade com os "hermanos" continentais que, num cenário de mistificação, elevariam o presidente Luiz Inácio da Silva à condição de líder máximo do terceiro-mundismo populista e demagógico edulcorado sob o invólucro de ascensão da esquerda ao poder pela via democrática.

O interesse do País ficou subordinado à conveniência de um projeto político do grupo ora no poder. A reação primeira do governo brasileiro à expropriação, não obstante a grita geral em defesa de uma reação enérgica, não indica disposição de alterar essa escala de prioridades.

A reunião ministerial de emergência realizada na manhã de ontem não produziu nada a não ser uma declaração de intenções desprovida de qualquer energia e objetividade.

O porta-voz presidencial anunciou garantias da Petrobrás a respeito do abastecimento de gás (sem nada dizer sobre os preços) ao Brasil e informou que o presidente da República conversaria ao telefone com Evo Morales e outros presidentes da região. A mesma Petrobrás também assegurava que a Bolívia jamais faria o que fez, dada a grandiosidade da presença da empresa por lá, o que põe em dúvida qualquer garantia agora.

Quanto ao telefonema a Morales, trata-se de uma atitude pífia ante a ocupação pelo Exército dos campos de produção da Petrobrás. Os termos das relações são estes e foram unilateralmente estabelecidos pelo presidente da Bolívia, sem conversas nem consultas.

Enquanto o Brasil ainda "tenta entender" - tergiversa e ganha tempo, pois - o que aconteceu, como se houvesse algo ainda a compreender, o primeiro-ministro espanhol, José Luiz Zapatero, advertiu Morales sobre a gravidade das conseqüências de seu gesto. Tomou posição.

No Congresso, os discursos dos governistas foram igualmente amenos e submissos às contingências ideológicas reinantes no Itamaraty. Falou-se muito em autodeterminação dos povos, no respeito à soberania boliviana, nas garantias do expropriador, mas não se deu peso algum ao interesse brasileiro agredido justamente no item mais espalhafatoso da agenda de campanha do presidente da República na semana anterior: a excelência da Petrobrás.

As críticas feitas na ocasião ao presidente guardaram relação com a apropriação eleitoral de um patrimônio construído ao longo de cinco décadas e variados governos. Um patrimônio pertencente ao povo brasileiro, que, a persistir essa posição ambígua e tênue do governo de Lula, segue relegado a um segundo plano frente aos direitos dos bolivianos, que, aliás, não estão em discussão.

O problema que se impõe é a preservação do negócio nacional. Para defender a Bolívia, Evo Morales se basta. Faz o que entende ser o melhor para seu país. O que se espera de Lula é que defenda o Brasil mediante ações objetivas, firmes e claras sem obediência às conveniências de suas relações com a simbologia do agressor.

Do contrário, será dele, e não de Morales ou Chávez, o papel de amigo da onça do Brasil.