Título: Beco sem saída
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Notas e Informações, p. A3

A nacionalização do petróleo e do gás bolivianos cria uma situação com a qual o governo Lula não contava. Tanto assim que, antes da segunda-feira, o presidente estava inteiramente alheio ao assunto. Levou um susto quando foi informado da decisão radical do governo boliviano, chefiado por seu "irmão caçula". Já o governo da Espanha, representando os interesses da Repsol, reagiu imediatamente. A União Européia também, chamando a atenção para os riscos da insegurança jurídica, que não ajudará a Bolívia a resolver seus graves problemas econômicos e sociais.

A Petrobrás também não imaginava que o governo boliviano iria tão longe. Nos cálculos da estatal, haveria uma regulamentação da Lei de Hidrocarbonetos aprovada no ano passado, rigorosa, mas nada que não se resolvesse com uma boa negociação. Além disso, contavam - o governo e a Petrobrás - que o Brasil teria tratamento privilegiado. Afinal, fora a Petrobrás, mais que qualquer outra empresa petrolífera, que acreditara nas possibilidades da Bolívia, quando o setor foi privatizado, na década de 1990, investindo cerca de US$ 1,5 bilhão e tornando-se a maior fonte de receitas do país. No plano político, Morales fazia declarações de amor a Lula, durante a campanha eleitoral, recebendo do Palácio do Planalto todas as deferências possíveis. Assim, por que se preocupariam com o radicalismo indigenista de Morales? Ele se voltaria contra outras empresas, outros países, não contra a Petrobrás e o Brasil.

E, quando as fatos mostraram que essa avaliação era por demais otimista, o argumento mudou de tom, mas não de essência: a Petrobrás estava a salvo de qualquer medida radical, porque os bolivianos não sabiam operar refinarias e gasodutos e, afinal, a Bolívia não teria mercado para os 27 milhões de m3 de gás que vende diariamente para o Brasil.

Esqueciam que, dias depois da posse de Evo Morales, um acordo entre ele e o presidente venezuelano garantiu o envio de técnicos e assessores da PDVSA para auxiliar o Ministério de Hidrocarbonetos a preparar a expulsão das empresas estrangeiras do setor energético. Não havia, portanto, impedimento algum para que fosse assinado o decreto supremo, que levou o patriótico nome de "Heróis do Chaco" .

O decreto supremo determina medidas radicais. Nacionaliza o gás e o petróleo e atribui à Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia (YPFB) "o exercício pleno da propriedade de todos os hidrocarbonetos produzidos no país", dando à empresa o poder de "definir as condições, volumes e preços tanto para o mercado interno como para a exportação e a industrialização". Dá prazo de 180 dias para que as empresas assinem contratos com as novas condições - e as que se recusarem não poderão mais operar no país. Além de o Estado assumir "o controle e a direção" da produção, transporte, refino, armazenagem, distribuição, comercialização e nacionalização dos hidrocarbonetos, deixa às empresas que lá permanecerem apenas 18% do valor do que produzirem. Os restantes 82% irão para o Estado ou para a YPFB.

Esse porcentual de pagamento talvez não pague os custos de operação e de amortização dos investimentos feitos pela Petrobrás. De qualquer forma, quando essa crise se prenunciou, a Petrobrás comunicou que não lhe interessava ser uma mera prestadora de serviços na Bolívia. Diante dos termos do decreto supremo, não lhe restará alternativa, a não ser transformar-se no que não queria ser - isso se quiser permanecer na Bolívia.

Vistas as coisas com realismo, depois que o governo brasileiro perdeu todas as oportunidades para demover Evo Morales da decisão de nacionalizar os recursos naturais de maneira radical - o decreto não prevê indenização para quem sair do país -, não há muito a fazer. Brasília pode esfriar as relações com a Bolívia; pode cortar todo tipo de cooperação e ajuda, inclusive nos organismos multilaterais de crédito e fomento - mas a Petrobrás terá de continuar operando na Bolívia, para garantir o fornecimento de gás. Graças ao fabuloso modelo energético da ministra Dilma Rousseff, o gás tornou-se combustível essencial para boa parte do parque industrial. E mais de metade desse gás vem da Bolívia, sem possibilidade de substituição de fornecimento a curto prazo. O Brasil tornou-se refém de várias decisões erradas - suas.