Título: Solene desprezo à lei
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Notas e Informações, p. A3

Se a atitude de jogar a sujeira para debaixo do tapete sempre revela negligência, o anúncio de que essa sujeira ali permanecerá encoberta só por determinado tempo - no caso, o período eleitoral - mostra, no mínimo, extremo cinismo. Mas essa foi a diretriz oficial que o Partido dos Trabalhadores (PT) deliberou adotar em seu 13º Encontro Nacional, ao determinar que investigações internas sobre a avalanche de denúncias de corrupção, comprometendo a quase totalidade de sua classe dirigente, ficarão para 2007, enquanto o partido cuida exclusivamente de continuar no poder a partir de 1º de janeiro daquele ano. É como se decretasse uma espécie de moratória, ou anistia prévia para vigorar somente no período eleitoral, e tentasse suspender, nesse período, a legislação criminal do País!

Foi em razão dessa diretriz que uma legião de corruptos comprovados desfilou e foi carinhosamente acolhida naquele evento partidário. Houve quem da cúpula planaltina - o ministro Luiz Dulci - tivesse a desmedida desfaçatez de dizer que "mensalão é uma tese que alguns defendem que teria havido (sic), mas não há provas". Quer dizer, mesmo depois de o procurador-geral da República, um competente e insuspeito jurista nomeado pelo presidente Lula, ter feito um criterioso trabalho, comprovando a atuação das quadrilhas que se apossaram das máquinas do partido e do governo, para se perpetuarem no Poder, bem como atestando, de modo inquestionável, a existência do famigerado mensalão, o PT continua fazendo absoluta vista grossa em relação a seus próprios delitos e delinqüentes internos. Aquela tímida tentativa que já ocorrera, por parte de seus grupos minoritários, de "refundar" o partido, fazendo-o retornar às suas origens, em que o princípio da "ética na política" era uma de suas principais bandeiras e lhes significava atraente novidade, na consciência popular, foi rapidamente esmigalhada e jogada na lata de lixo de sua história.

Mas, se o comportamento oficial petista representa, antes de tudo, um brutal desprezo à lei, tem ele sua complementaridade no comportamento e nos discursos do presidente da República, que na mesma intensidade têm desrespeitado a lei eleitoral - e num crescendo que, a pretexto da comemoração do Dia do Trabalho, chegou a nível absolutamente desbragado. Nas inaugurações de obras pelo Brasil afora - mesmo naquelas sem importância para justificar a presença presidencial -, o presidente Lula ainda podia se beneficiar de eventuais dúvidas sobre os limites entre a atuação do governante e a do candidato, já que, ao ser instituída a reeleição, essa distinção não ficou suficientemente clara. É certo que jamais convenceu alguém a cínica tentativa de não se declarar candidato, para ficar livre das restrições da lei eleitoral, mesmo se aproveitando da máquina de governo (transportes, pessoal, comunicação) para fazer a campanha reeleitoral.

No entanto o presidente, agora, extrapolou. E não foi pelo ato falho, no pronunciamento em que se referiu, expressamente, à sua reeleição e nem tampouco pela sua participação ativa no 13º Encontro Nacional do PT para obrigar o partido a adotar suas diretrizes sobre alianças eleitoreiras. Falamos de sua mensagem em cadeia nacional de rádio e televisão, a pretexto da comemoração do Dia do Trabalho, que foi uma inequívoca e deslavada peça de campanha eleitoral, por todo o seu texto e seu tom. A convocação de rede nacional, por parte de chefes de governo, no Brasil, já é prática antiga, pode já ter sido usada com intenções eleitorais, mas jamais chegara a tal explicitação, a tamanha ausência de escrúpulos, no duplo desrespeito à lei eleitoral: pelo uso do instrumental de comunicação, destinado ao interesse geral da sociedade, num projeto de interesse específico de uma candidatura e de um partido, e pelo desrespeito aos prazos da legislação eleitoral - pelos quais os candidatos só podem iniciar suas campanhas depois de escolhidos nas convenções partidárias (programadas para junho).

Não é sem razão que os partidos oposicionistas se movimentam para acionar a Justiça Eleitoral, pois é inadmissível que, atingido esse ponto, também se faça vista grossa a tão notório e brutal desprezo à lei.