Título: Só o Planalto não previu
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Notas e Informações, p. A3

A decisão do presidente boliviano Evo Morales de nacionalizar a exploração de gás e petróleo no país, formalizada bombasticamente numa instalação da Petrobrás ocupada pelo Exército, foi um golpe letal para a política do governo Lula na América do Sul. Expôs ainda à luz do sol a abissal alienação do presidente diante dos noticiados desdobramentos de uma crise anunciada, cuja gênese também lhe escapa por completo. Na sexta-feira passada, três dias antes de Morales assinar o esperado decreto da estatização, perguntou-se a Lula como pretendia reagir à crescente hostilidade do governo de La Paz às empresas brasileiras na Bolívia.

A sua resposta foi um assombro: "Não conversei com os empresários, não conversei ainda com a Petrobrás (...), não conversei com Evo Morales. Até porque ninguém procurou a Presidência da República." Pelo visto, ninguém o informou do fiasco da viagem à Bolívia, nessa mesma semana, do secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães - aliás, o artífice do divórcio entre a diplomacia brasileira e o interesse nacional, com o seu neoterceiro-mundismo esbugalhado. Ele foi a La Paz tentar amainar a tempestade que se adensava, encenou a assinatura de alguns acordos que ninguém ficou sabendo o que são, mas não conseguiu ser recebido nem por Morales, nem por qualquer de seus ministros.

Por fim, no fatídico 1º de Maio, Lula estava em São Bernardo, o chanceler Celso Amorim, em Genebra, a ministra da Casa Civil (e ex-titular de Minas e Energia) Dilma Rousseff, em Washington, e o presidente da Petrobrás Sergio Gabrielli, em Houston. Para o Planalto, o espetaculoso ato do presidente boliviano caiu como um raio em céu azul. "O governo foi pego de surpresa", confessou o assessor internacional de Lula, Marco Aurélio Garcia. "Faltam dados do problema", resignou-se, "e falta, sobretudo, uma posição do presidente." Só não faltou a aloprada idéia de recorrer eventualmente ao cúmplice e fiador do golpe de Morales contra a Petrobrás, Hugo Chávez , para mediar a crise.

Só os nefelibatas de Brasília não se deram conta de que Morales rifou o presidente que cometera a impropriedade diplomática de apoiar ostensivamente sua candidatura à presidência do vizinho país. Ele já deixou claro que os seus ídolos e gurus são Chávez e o ditador cubano Fidel Castro. No sábado, os três se reuniram em Havana para celebrar o eixo de três pontas. Mesmo que Morales tivesse poupado o seu homólogo brasileiro da desfeita de 1º de Maio, as suas inconfundíveis preferências atestam o óbito da diplomacia lulista onde mais ela deveria vicejar - no entorno do País.

Tanto no que toca ao alheamento do presidente em face do que Morales jamais escondeu que iria fazer quanto na crença primária de que o seu carisma bastaria para levar o Brasil à liderança na América do Sul, a questão de fundo é um misto de desconhecimento das realidades regionais presentes e passadas com uma formidável soberba, camuflada pela ostentação de suas origens proletárias. Por exemplo, Lula demonstrou desde a primeira hora uma absoluta incapacidade de entender as circunstâncias históricas que moldaram a relação do Brasil com a Bolívia - vista pelos olhos bolivianos - e o impacto da presença da Petrobrás no território vizinho.

Para o mais pobre dos países da área, devastado pelo colonialismo e o imperialismo, onde a maioria dos habitantes, de origem indígena como Evo Morales, só conheceu a opressão da elite ocidentalizada, o controle das suas riquezas minerais - e, em especial, dos seus recursos energéticos - é ao mesmo tempo questão nacional por excelência e símbolo da demanda por justiça social. Nesse cenário, o peso da história e do interesse político se impôs ao dado objetivo de que Bolívia e Brasil têm interesses complementares em matéria de exploração de hidrocarbonetos, notadamente o gás, bem como ao fato sabido de que a estatal brasileira jamais assumiu uma atitude predatória ou leonina nos seus negócios com os bolivianos.

Era fatal, portanto, que Morales fizesse o que fez. Por uma fatalidade, o Brasil tem neste momento um presidente sem descortino político-diplomático e uma diplomacia movida por suas ambições fantasiosas. Nesse acúmulo de adversidades, Lula é o grande perdedor, e Chávez, o grande ganhador, da nacionalização decretada por Morales - que só foi possível com a garantia do venezuelano de que substituirá a Petrobrás onde for preciso.