Título: Perdoai-nos, já que o outro também faz
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Nem a Velhinha de Taubaté, a personagem crédula de Luis Fernando Verissimo, se ressuscitasse e lesse o noticiário do fim de semana, poderia esperar resultado diferente do 13º Encontro Nacional do PT em relação aos "mensaleiros" do partido. O perdão aos companheiros que "se equivocaram", coerente com a lógica auto-indulgente dos petistas, neste instante também se tornou essencial para lhes garantir mais quatro anos de "boquinhas" à custa das burras federais.

A auto-indulgência petista é conseqüência natural de seu senso de missão. Como se sabe, o grande inspirador do ainda hoje líder inconteste do partido, o comissário José Dirceu, o tirano georgiano Josef Stalin, celebrizou a radicalização completa do maquiavelismo de esquerda com a fórmula cínica segundo a qual "os fins justificam os meios". Alguns ingênuos imaginam que os tais fins seriam o comunismo, objetivo final da igualdade plena e solidária dos seres humanos, passando antes pelos meios da implacável ditadura do proletariado. A verdade é que essa fórmula já foi abandonada há muito tempo e hoje o sonho socialista não é mais a extinção da propriedade privada dos meios de produção, mas a apropriação, seja por quais meios for, até mesmo usando as debilidades da democracia dita "burguesa", do aparelho do Estado, através do qual é possível chegar à fortuna fácil e ao poder absoluto.

No primeiro governo Lula, a aplicação no âmbito federal de uma técnica de desvio das verbas públicas para os cofres do PT e as contas de seus dirigentes, testada nas prefeituras sob seu controle, só não foi plenamente bem-sucedida por um passo em falso dado pelo grande coordenador do esquema (segundo o procurador-geral da República). O ex-chefe da Casa Civil José Dirceu menosprezou o impacto da vingança ameaçada pelo ex-amigo Roberto Jefferson (RJ), presidente nacional afastado do PTB, e foi destruído pela bomba-relógio que o inesperado camicase fez explodir na própria boca. O terrorista suicida e seu principal alvo tiveram os próprios mandatos extintos pelo atentado, mas isso não gerou muitos estragos, nem para um nem para o outro. Não consta que a qualidade de vida de Jefferson tenha sido profundamente abalada por sua ousadia. E a desenvolta e impune mobilidade do comissário em jatinhos particulares cumprindo tarefas do chefe supremo indica que ele está longe de ter perdido o poder e as mordomias dos velhos tempos.

Os outros personagens do esquema, apelidado de "mensalão" por seu delator, gozam da ampla, geral e irrestrita impunidade com a qual a elite dirigente se protege. O estado de espírito desses beneficiários do "valerioduto" pode ser aferido no pagode da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) no plenário da Câmara ou, agora, no desabafo feliz de seu companheiro Professor Luizinho (PT-SP), após o encontro do fim de semana em São Paulo: "Nunca tive tanta solidariedade concentrada." Essa solidariedade se deve à certeza de que, como sói ocorrer em nosso quartel de Abrantes, onde tudo sempre continua como dantes, ninguém vai ser punido pelos delitos que eventualmente tiver cometido, pois, como na velha República do estado de sítio de Bernardes, só existe pena para adversário, sendo o perdão exclusivo atributo próprio e para amigos e apaniguados.

O enterro da investigação dos "mensaleiros" do PT na reunião à qual compareceram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu articulador José Dirceu (que, aliás, não perdeu os direitos políticos com a cassação?) reafirma a fé que os petistas têm, com fundadas razões, ao que tudo indica, na falta de autoridade moral de seus adversários na cobrança da justa punição à "companheirada" infratora. E também consagra sua convicção de que as bases eleitorais comungam os ideais deles, segundo os quais corrupção condenável mesmo só a dos outros, nunca a própria ou de amigos e aliados.

A busca do poder de reduzir adversários a pó, mesmo que isso implique o esmagamento das instituições republicanas, teve de ser adiada para o segundo round possível da luta, por conta da reação das vítimas e do que resta de vitalidade nas instituições que as protegem. Nada impedirá, contudo, o presidente, se reeleito, de tentar, e desta vez com sucesso, calar os promotores e funcionários em geral com a lei da mordaça, a imprensa com o Conselho Federal de Jornalismo e o rádio e a televisão com a Ancinav. Quem tiver um pouco de juízo na cachola conta com isso.

Os ingênuos que acreditam que o Mal é de direita e a esquerda ainda é a casa do Bem têm agora uma oportunidade de perceber o óbvio, ao dar o devido valor à declaração do secretário de Relações Internacionais do PT, após o 13º Encontro Nacional. "Nossa prioridade neste ano é reeleger o companheiro Lula", disse Valter Pomar. Isso significa: obter o perdão do povo pelo aparelhamento passado e garantir as "boquinhas" do futuro. Não é uma missão impossível. Nem sequer está parecendo assim tão difícil.

Para ganhar a eleição de outubro o PT não aposta na inocência dos seus delinqüentes, mas no reconhecimento da culpa pelos adversários. A calhorda participação das bancadas oposicionistas no perdão generalizado aos "mensaleiros" da Câmara avaliza e dá fé a esse truísmo. E permite ainda aos petistas a necessária caradura para se solidarizar com os próprios infratores. Enquanto a campanha da reeleição de Lula navega em mar de almirante, seu principal adversário, Geraldo Alckmin, do PSDB, não conseguiu ainda montar uma equipe de assessoria, rascunhar um programa de governo nem encontrar um discurso capaz de persuadir o eleitor a mudar de gestor. Mais que a impressão de que não é alternativa viável a Lula, o PSDB faz o eleitor desconfiar de que nem sequer dispõe de um candidato apto a enfrentar o presidente na disputa eleitoral.