Título: Terra em transe
Autor: Fabio Graner, Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/05/2006, Economia & Negócios, p. B5

A decisão do governo da Bolívia, anunciada pelo Presidente Evo Morales, poderá afetar os interesses brasileiros duplamente: - nacionalização das refinarias de petróleo, atingindo a Petrobrás.

- fornecimento estável de gás natural e o aumento do seu preço para o Brasil.

No tocante à nacionalização, a nova legislação não é clara, mas apesar disso a Petrobrás decidiu permanecer na Bolívia e durante os próximos 180 dias vai verificar as condições em que deverá operar como prestadora de serviço. Morales foi muito claro ao afirmar que o decreto assinado na principal refinaria da Petrobrás determina que a propriedade, a posse e o controle total das refinarias passem para o "povo boliviano".

Quanto ao fornecimento de gás, o governo brasileiro tranqüiliza as empresas nacionais no sentido de que não haverá problemas de abastecimento do produto. A questão, contudo, que se coloca é a de que Evo Morales deve impor um aumento significativo no preço do gás para acompanhar os preços internacionais do petróleo.

A reação do governo brasileiro foi cautelosa e tímida, em face da ameaça concreta ao livre comércio, das conseqüências para os investimentos na região e para a segurança jurídica dos investidores. Diferente da reação do governo da Espanha que condenou o ato e manifestou-se preocupado com as medidas radicais.

Brasília tenta minimizar a gravidade da situação, sem reagir de forma clara contra a expropriação de bens de uma companhia brasileira, desrespeitando direitos e contratos assinados e contra a ameaça de aumento do preço do gás que colocará em risco uma parte crescente da indústria paulista.

Anuncia-se que o presidente Lula vai se valer de suas relações pessoais com Morales para tentar uma saída negociada para a crise, esquecendo talvez que os países não têm amigos, mas sim interesses.

São preocupantes o déficit de informação do governo em área tão sensível da economia e o grau de ideologização com que o assunto está sendo tratado. Repetidas mostras de apoio ao presidente Evo Morales (convidado pelo governo brasileiro a ingressar no Mercosul) reforçam a percepção de que um assunto dessa gravidade, colocando em risco o interesse nacional, foi tratado, pelo menos, com ingenuidade pelo Itamaraty e pelo governo como um todo.

O Itamaraty em dezembro de 2004 lançou a Comunidade Sul-Americana de Nações como um projeto para fortalecer a integração regional. Nesse ano e meio, o que se nota é uma verdadeira desintegração da América do Sul, por ações unilaterais como a disputa entre a Argentina e o Uruguai e por ações individuais do presidente Hugo Chávez, que, convidado para ser membro pleno do Mercosul, está estimulando ações no sentido contrario, como é o caso do apoio à Bolívia na nacionalização do petróleo, do respaldo ao Paraguai e ao Uruguai no descontentamento em relação ao Mercosul, da saída da Comunidade Andina de Nações apressando sua desagregação, sem falar da assinatura em Havana do Tratado de Comércio do Povo integrado por Cuba, Bolívia e Venezuela.

O fortalecimento da integração regional e do Mercosul são duas das principais prioridades do governo brasileiro. Os acontecimentos recentes mostram o Itamaraty sem estratégia, na defensiva e a reboque dos acontecimentos. Um novo eixo em torno de Hugo Chávez está sendo formado, deixando de lado as pretensões de liderança do Brasil na região, tão apregoada pelas autoridades de Brasília.

Liderança não se proclama, se exerce.

É chegada a hora de o governo, sobretudo através do Itamaraty, de forma firme e clara, vir a público assegurar que os interesses nacionais serão defendidos acima da ideologia e do populismo que se espraia pela região e que pode também no futuro ser um risco no Brasil (lembremo-nos que na recente convenção do PT a proposta de reestatização da companhia Vale do Rio Doce foi derrotada por apenas 50 votos...)