Título: De volta ao Estado
Autor: Marco Aurélio Nogueira
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

O caos e a violência que se instalaram em São Paulo neste mês de maio não provocaram apenas horror, medo e preocupação. Houve de tudo naqueles dias: ineficiência administrativa, afronta ao poder público, desrespeito aos direitos humanos mais essenciais, explicitação das falhas grosseiras do nosso sistema prisional, tudo embalado pelo surgimento de um novo "poder político", o PCC, que revelou surpreendente capacidade de organização e mobilização. Faz tempo que sabemos viver sobre um vulcão, mas não se imaginava que ele pudesse explodir daquele jeito.

Em meio às desencontradas justificativas oficiais e à repercussão midiática dos fatos, pôde-se ouvir o brado errático e balbuciante, mas suficientemente forte para se converter em senso comum, clamando por mais Estado e mais autoridade.

De uma hora para outra, o discurso que apresenta o Estado como uma praga a perturbar os bons novos tempos do mercado e da globalização foi confrontado com um incontido "desejo de Estado". Entre os justos apelos para que a autoridade pública se afirmasse perante o crime, pôde-se ouvir também a velha lengalenga reacionária de "mais polícia na rua", de "direitos para os humanos" e de "conseqüências nefastas da política de direitos humanos", que teria convertido os presídios em "hotéis de luxo" e concedido mais privilégios aos criminosos que aos homens e mulheres de bem.

Nenhuma pessoa sensata pode minimizar a importância de se prover a vida social de um eficiente sistema de defesa e proteção. A segurança e a segurança pública são valores inestimáveis, tanto quanto o respeito à lei e às instituições coletivamente construídas. Diga-se o mesmo, aliás, da autoridade e do "uso legítimo da força", que Max Weber celebrizou como núcleo da idéia de Estado.

Desse ponto de vista, o "desejo de Estado" manifestado nestas últimas semanas representa a recuperação de parte da lucidez perdida no vendaval neoliberal que fez o elogio dogmático do mercado e da "sociedade civil organizada". Expressa o reconhecimento de que o Estado é um recurso social precioso, sem o qual a vida coletiva não pode ser concebida.

Mas, nas atuais circunstâncias de globalização capitalista, de vida veloz, "desterritorializada", movida a redes e protagonizada por indivíduos soltos e com identidades fluidas, não basta repor o Estado-força para se cogitar de uma "boa sociedade". Do mesmo modo que não há como estabelecer nenhuma causalidade simples entre pobreza e violência, dado que os próprios termos da vida moderna produzem uma violência endêmica que não se limita ao universo dos miseráveis e dos excluídos, também não dá para voltar a pensar em Estado como se a sociedade fosse a mesma de sempre. Ela está mudando substancialmente e o Estado de antes não lhe pode ser muito útil.

Prova do quanto estamos confusos com isso é que se falou muito em Estado e em autoridade, mas quase nada em Estado democrático e em reforma do Estado. Sabemos que é necessário mudar o sistema penal e prisional, o modo de organizar as forças policiais, a estrutura da gestão pública nesta área - coisas inquestionavelmente importantes, como não se cansa de propor o sociólogo carioca Luiz Eduardo Soares -, mas não sabemos como abordar o fundamental, a reposição do contrato social, sem o que não se pode imaginar um Estado democrático que funcione.

Temos mesmo de voltar a pensar no Estado. Mas perderemos tempo e nos iludiremos se voltarmos a concebê-lo como um ônus para a sociedade, uma máquina cara e perdulária que deveria ser enxugada, esvaziada de patrimônio, reduzida ao mínimo. Perderemos mais tempo ainda, e pularemos no precipício, se fizermos isso agitando o discurso fácil do Estado autoritário, senhor da lei e da ordem, parâmetro unilateral da "tolerância zero". Só uma profunda e sustentável reforma institucional, intelectual e moral nos pode dar o Estado de que necessitamos. Trata-se de bem mais do que uma mexida no aparelho de Estado e nos métodos de gestão.

Em condições sociais de grande complexidade, como são as de hoje, não há como ter mais segurança sem mais liberdade e mais democracia, além, evidentemente, de mais justiça, mais igualdade e mais respeito à lei. Lembrar do Estado sem isso é emancipar a autoridade de seus vínculos sociais, separar o poder público do poder político. É manejar a idéia de que se pode privilegiar o controle estatal numa condição estrutural em que os controles são precários e na qual predominam a incerteza e a insegurança.

Além de exigir que se faça algo urgentemente para recuperar o sistema penal e prisional, precisamos trabalhar para termos uma política democrática de segurança que se enraíze socialmente. E, ao mesmo tempo, lutar para que se tenha um mundo que aja na mesma direção, ou seja, em prol de uma segurança internacional democraticamente sustentada. Se o planeta se globalizou, não há como avançar numa área sem que conheçam avanços simultâneos nas demais. Até mesmo porque o Estado-nação já não pode postular uma soberania inquestionável e se encontra cercado tanto pelas pressões do ambiente e do mercado globais, que ele não pode evitar, quanto pelas pressões de suas próprias áreas subnacionais, a que ele não pode atender. O Estado ainda continua sendo a instância em que se concentra o poder político, mas seu poder efetivo é menor e dificilmente se faz acompanhar de consistência política e impregnação social. Sua força atual pode ser suficiente para montar um razoável aparelho policial de repressão, mas não para garantir unilateralmente um contrato social duradouro. Este precisará ser buscado de forma mais ampliada. O desafio do século 21, como diz Zigmunt Bauman, será o de fazer com que poder e política voltem a se aproximar.

Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp, é autor, entre outros, dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004) E-mail: m.a.nogueira@globo.com