Título: Aos 25 anos, milhagem dá sinais de exaustão
Autor: David Leonhardt
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Economia & Negócios, p. B15

Criado em 1981, o programa aéreo de fidelidade começa a apresentar problemas estruturais

Tom Plaskett voava de Boston a Dallas, num certo dia de 1980, com um problema para resolver. Aos 36 anos, ele acabava de herdar o principal cargo de marketing da American Airlines de Robert Crandall, que se tornara o presidente da empresa. Crandall, como centenas de outros executivos, procurava um modo de manter os consumidores fiéis à sua companhia.

O problema era que o governo americano havia desregulamentado o setor, liberando as companhias aéreas para competirem no preço. Se a única maneira de garantir a fidelidade era comprá-la com tarifas mais baratas, Crandall sabia que a American estava encrencada.

Para Plaskett e sua equipe, o caso era fazer os viajantes comprarem passagens da American mesmo que esta não oferecesse o preço menor. Enquanto ele pensava sobre o que mantinha as pessoas voando pela mesma companhia, sua mente viajava para a cozinha da casa de sua infância em Raytown, Montana, onde ele se sentava com a mãe e lambia Selos Verdes S&H. Os selos tinham vindo de um supermercado local como brinde para quem fazia as compras ali, e quando os Plasketts colocaram um número suficiente deles num caderno, eles o levaram a um centro de troca da S&H para reclamar um prêmio.

Uma vez foi uma torradeira elétrica. Outra, um aspirador de pó. Não eram artigos muito interessantes, mas eram o bastante para amarrar a família Plaskett àquele supermercado.

"Era a idéia de obter algo de graça, realmente", disse ele. "Aí eu comecei a pensar, por que não poderíamos trabalhar assim com empresas aéreas? " No ano seguinte, Crandall, Plaskett e seus colegas desenvolveram um plano secreto espelhado nos selos verdes, uma surpresa para pegar os rivais com a guarda baixa. Em 1.º de maio de 1981, eles anunciaram um programa chamado AAdvantage. Nascia a milhagem para viajantes freqüentes.

A milhagem se tornou uma das idéias comerciais mais bem-sucedidas da história do capitalismo moderno. Ela tem sido um expediente diabolicamente brilhante para tirar dinheiro das pessoas, que são levadas a sentir que estão recebendo um presente.

Claro, você acabou de gastar U$ 800 consertando seu carro, mas pagou com um cartão de crédito que rende milhas, colocando-o muito mais perto de umas férias gratuitas. Se acreditar na idéia de que uma milha vale cerca de US$ 0,01, os 14 trilhões de milhas não pagas que os viajantes possuem valem mais que todo o dinheiro americano em circulação, como observou a revista The Economist. Isso não inclui os pontos juntados nos muitos programas de imitação. Em meu restaurante local Tex-Mex, sou membro de um clube de comedores freqüentes de burritos.

"Nós imaginamos que, se desse certo", disse Crandall, "substituiríamos os Selos Verdes S&H." Eles certamente fizeram isso, e mais. Mas a comparação também tem um lado escuro. Os selos verdes, afinal, não existem mais. Foram vítimas de sua própria espiral inflacionária nos anos 60, quando as lojas começaram a duplicar e triplicar os selos, o que lhes custou um dinheirão.

Logo, alguns gerentes de lojas perceberam que poderiam oferecer descontos atraentes, em vez deles, disse Joseph C. Nunes, professor de Marketing da Universidade do Sul da Califórnia. O único lugar onde ainda se podem encontrar os selos é na arte de Andy Warhol.

Houve outro exemplo da noção de que o meio empresarial americano tende a fincar cada boa idéia no solo como uma estaca de tomateiro, como disse o escritor James Granty sobre Wall Street. Agora a milhagem para viajantes freqüentes segue um caminho parecido.

Ela deslanchou porque fez um trabalho maravilhoso de exploração da natureza humana. De sua própria experiência com os selos verdes, Plaskett sabia que colecionar adesivos ou pontos podia parecer uma realização em si. Assim, a American Airlines deliberadamente entregou centenas deles de uma vez, porque "10 mil milhas" soava muito melhor que "seis etapas de vôo." A companhia transformou as milhas viajadas em unidade de moeda em vez de dólares gastos, para reduzir as chances de as empresas reclamarem os prêmios de seus empregados. Afinal, eram os viajantes de negócios que decidiam por qual companhia iam voar, ainda que a conta fosse paga por seus empregadores. A milhagem para viajantes freqüentes se tornou uma espécie de comissão.

O melhor de tudo, os prêmios principais - férias -, eram exatamente o tipo de coisa para fazer sonhar acordado. Entretanto, seu custo para a American era quase nenhum porque a companhia teve o cuidado de usar assentos que, não fosse aquilo, ficariam desocupados.

Não espanta, então, que a United Airlines tenha copiado a American pouco tempo depois, e todas as outras grandes empresas as acompanharam em seguida. Como era sua intenção, os programas retardaram o avanço das empresas aéreas econômicas. Um estudo feito nos anos 90 revelou que os viajantes a negócios que faziam uma viagem de mil milhas pagavam U$ 170 extras, em média, para voar numa companhia com seu programa de usuário freqüente.

Mas eu aposto que não se encontraria a mesma vantagem hoje. As companhias aéreas econômicas são um pouco maiores do que eram, e têm seus próprios programas de fidelidade. Os gerentes de viagens de empresas, por sua vez, podem usar software para forçar os viajantes de negócio a escolherem a passagem mais barata.

E a milhagem não tem o mesmo ímpeto que já teve, porque também ela foi engolfada numa espiral inflacionária. Os viajantes que antes viam transferências para a primeira classe como um direito inalienável, hoje têm dificuldade em consegui-las porque muitas milhas estão respingando profusamente e os aviões andam cheios demais. Reclamar passagens gratuitas em rotas populares também pode parecer quase impossível.

Os programas de viajantes freqüentes não estão em via de desaparecer, porque nenhuma empresa aérea pode se dar o luxo de abandonar unilateralmente o seu. Mas comparada com o objetivo original de Crandall - impedir que os assentos de aviões se tornassem uma commodity - a milhagem está parecendo muito velha e cansada aos 25 anos.

Basta observar o que a United está fazendo para comemorar o 25º aniversário de seu programa. Está deixando seus melhores clientes usarem suas milhas para comprarem tacos de golfe Callaway, óculos escuros Coach e câmeras digitais Canon. Isso transforma a milhagem em mais um desconto em vez da garantia de fidelidade que Plaskett vislumbrava.