Título: Um triste espetáculo de brigas e vaidades
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Economia & Negócios, p. B1,3,4,5,6

Imagem da América do Sul na reunião de Viena sai fortemente arranhada e isso pode prejudicar investimentos

A 4.ª Reunião de Cúpula União Européia-América Latina foi palco de um triste espetáculo da parcela Sul do continente americano.

Num único dia, sexta-feira, os chefes de Estado europeus reunidos em Viena testemunharam as disputas, tiroteios públicos e desacertos explícitos entre seus colegas sul-americanos - uma cena que, do ponto de vista prático, contribui diretamente para espantar os investidores estrangeiros da região.

Nas atuações sem disfarces de presidentes da América do Sul, os líderes da UE puderam constatar que, neste momento, a integração da regional tão estimulada pelo presidente Lula foi abortada por uma explosão de vocações populistas, de artimanhas caudilhistas e de retóricas nacionalistas.

Viena transformou-se numa quadrilha às avessas.

O estreante Evo Morales, ex-líder cocaleiro boliviano, bateu de frente com Lula e José Luis Rodríguez Zapatero, da Espanha, ao acusar as companhias petroleiras de seus países, Petrobrás e Repsol-YPFB, de sonegarem impostos e de atuarem no contrabando na Bolívia.

Evo tropeçou em Alejandro Toledo, do Peru, ao dizer que um gesto conciliador dele havia sido uma "palhaçada".

Chegou a a confessar à imprensa ter ouvido compassados sermões do francês Jacques Chirac e do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, sobre sua decisão de nacionalizar o setor de gás e petróleo e suas atitudes pouco diplomáticas.

Tabaré Vázquez, do Uruguai, e Néstor Kirchner, da Argentina, recusaram-se a se cumprimentar por causa da contenda bilateral sobre os investimentos finlandeses e espanhóis no setor de papel e celulose do lado uruguaio da fronteira.

O atrito desembocou no cancelamento da reunião União Européia-Mercosul, que ocorre tradicionalmente em paralelo à Reunião de Cúpula e que ocorreria na manhã de ontem. Kirchner, que preside neste semestre o Mercosul, preferiu agradar uma parcela expressiva de seu eleitorado, os de descendência judaica, e visitar um antigo campo de concentração nazista na Áustria.

"Já saí do Brasil sabendo que não tinha essa reunião. Kirchner não podia, Tabaré não podia. Não ia fazer só eu, o (ministro das Relações Exteriores) Celso Amorim e os paraguaios", disse o presidente Lula, ao ser questionado sobre esse novo fiasco.

No tiroteio, a nota de discrição curiosamente foi tocada pelo intempestivo Hugo Chávez, da Venezuela, que nos dias que antecederam a reunião havia incendiado o ambiente "integrador" dos vizinhos da América do Sul.

Em Viena, o líder venezuelano nem mesmo convocou a imprensa internacional para despejar seus costumeiros ataques contra os Estados Unidos e expor sua apaixonada defesa de uma integração alternativa da América Latina, projetada em comum acordo com Fidel Castro, de Cuba.

Mas a mão de Chávez pousou claramente sobre seu pupilo Evo nos acontecimentos de Viena - como se viu nas tempestuosas acusações do boliviano contra o Brasil - e tornou-se evidente com o fracasso da tentativa de lançamento das negociações de um acordo de livre comércio entre a Comunidade Andina de Nações (CAN) e a União Européia.

Num curto-circuito com a Colômbia e o Peru, em função dos acordos de liberalização comercial que aqueles países firmaram com os Estados Unidos, além de sua intromissão no processo eleitoral peruano, Chávez havia retirado a Venezuela da CAN em abril passado - quatro meses depois de ter conseguido a aprovação de seu projeto de adesão plena ao Mercosul.

Diante de tamanho desconcerto entre os sul-americanos, a União Européia preferiu lançar apenas as negociações de livre comércio com o bloco de países da América Central. Com o Mercosul, a expectativa de Bruxelas de chegar à reunião de Viena com o acordo fechado já estava sepultada bem antes do encontro. O que os europeus não esperavam era a conversão da reunião dos presidentes em uma mera e rápida conversa entre ministros.

Mesmo com as ressalvas dos europeus de que o presidente Lula continua a ser o líder inequívoco da região, o cenário deixado em Viena sugere que o protagonismo do Brasil foi chamuscado pelas atitudes de seus vizinhos.

O Itamaraty e o Palácio do Planalto terão de costurar novamente os compromissos de cada país da América do Sul com a integração regional, se quiserem manter seu ambicioso objetivo. A tarefa seguramente envolverá o cumprimento de uma lição de casa atrasada há três anos - o reforço e a consolidação das parceiras e dos acordos entre os países do Mercosul.

Mas também uma varredura nos estragos provocados na região pelas iniciativas de Hugo Chávez, que não se limitam apenas às "broncas" feitas ontem pelo presidente Lula depois de seu encontro com Evo Morales, e um chamado aos objetivos práticos da integração e da atração de investimentos.

Em seu morno encerramento, a Reunião de Cúpula de Viena deixou nos presidentes a impressão de que, em uma observação, Chávez tinha razão: a de que o protesto da Rainha do Carnaval argentina, Evangelina Carrozo, contra as papeleiras uruguaias, "foi a melhor coisa" desta cúpula.