Título: O étnico, cada vez mais na moda
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Economia & Negócios, p. B1,3,4,5,6

A onda de orgulho indígena ficou mais forte com a eleição de Evo

Em três meses de governo do aimará Evo Morales, a Bolívia assiste a uma onda de orgulho indígena como jamais se viu. Nas famílias de classe média de La Paz, é moda batizar os filhos com nomes como Inti, Uasca ou Limani. Nas zonas rurais, o aprendizado de duas línguas tornou-se obrigatório, ainda que muitas vezes só no papel - às vezes faltam até professores de castelhano. Nas lojas de luxo, que têm uma tradição de copiar roupas européias, já se aprova o estilo de origem étnica, antes exclusivo da turma com pouco dinheiro e pele mais escura.

Esta presença indígena começou há mais de uma década, com o apoio de várias comissões da ONU e de grandes fundações do Primeiro Mundo. Também tem sido estimulada por um presidente que tomou posse depois de abençoado por chefes religiosos indígenas, ainda que a Constituição diga que a Bolívia tem religião "católica, apostólica e romana". Evo instalou três indígenas no ministério. Seu partido, o MAS, adotou como símbolo de campanha a Wiphala, bandeira indígena de sete cores. A população de origem aimará corresponde a um terço dos bolivianos. Outro terço é de origem quíchua e o restante é dividido entre guaranis e mestiços de indígenas com europeus, que formam a elite que dirige o país mais ou menos desde sempre.

Para Fernando Untoja, professor de Economia na Universidade San Andrés, líder nacional do movimento Ayra, ligado aos aimarás e quíchuas, "a vitória de Evo Morales terá um efeito histórico irreversível: vai acabar com o medo dos jovens indígenas para enfrentar desafios de todo tipo, inclusive para disputar o poder". Ex-deputado, entre 1997 e 2002 o professor Untoja foi colega de Evo Morales na Câmara. Hoje, é um crítico do governo. "Temos um governo de classe média de esquerda, que tem uma visão paternalista e pratica o populismo indígena." O professor diz que a essência deste comportamento reside na postura de quem pretende "falar pelo indígena, como se não pudéssemos ter voz", e traduzir "nossas reivindicações, como se não soubéssemos quais são nossos interesses".

NOVA ESQUERDA

A esquerda boliviana aproximou-se dos indígenas depois das derrotas dos anos 60 e 70. Guerrilheiros foram massacrados na selva e lideranças trotskistas, que tentaram construir uma república soviética em La Paz, executadas no golpe de Hugo Banzer, em 1971. Os sobreviventes descobriram que o povo tinha pele cor de bronze, costumes peculiares e falava outra língua. Para Raul Prada, ex-trotskista, hoje em campanha por uma cadeira na Constituinte pelo MAS ,"foi assim que surgiu uma nova esquerda para substituir a velha esquerda."

"Foi assim que as mesmas famílias que governam a Bolívia desde sempre descobriram um jeito de permanecer no poder", rebate Fernando Untoja, lembrando uma história com passagens grotescas. Até 1952, os indígenas não tinham direito a voto, trabalhavam em regime de semi-servidão. Ainda nos anos 80, havia cafés e cinemas de La Paz que impediam a entrada de senhoras indígenas que usassem roupas típicas de sua etnia. Para o professor Untoja, a esquerda boliviana "descobriu o voto indígena, até porque estamos falando de mais de 60% do eleitorado".

Apesar do massacre colonial, as nações indígenas da Bolívia conservam rituais e até estruturas próprias de poder e sobrevivência. "As castas foram mantidas em diversas regiões", afirma Untoja. "Isso explica a resistência." Em diversos pontos do país milhares de indígenas sobrevivem nos ayllus, comunidades autogovernadas que reúnem entre 30 e 40 famílias. Ali é proibido vender a terra comum e o sujeito que rouba pode sofrer punições em ordem crescente: uma advertência na primeira vez; duas chicotadas na segunda; e desterro na última. Nas vizinhanças de determinadas cidades, um número imenso de indígenas leva vida dupla: são moradores dos ayllus e, ao mesmo tempo, trabalham e cumprem seus deveres como cidadãos comuns. Perto do Chile, existem indígenas que ora são chilenos, ora são bolivianos.

Para o professor Raul Prada, ocorre na Bolívia uma "revolução indígena". Para ele, a revolução explodiu em 2003, na queda do presidente Sanchez de Lozada, abrindo o processo que levaria à eleição de Evo com 54% dos votos. Para o deputado Cesar Navarro, líder da bancada do MAS na Câmara, vive-se hoje a seguinte situação: "Temos um governo revolucionário que deve agir sob as regras do jogo liberal."

Capaz de bloquear estradas, paralisar territórios e até fechar o fornecimento de água, nos momentos mais dramáticos do conflito contra Lozada, a massa indígena recebeu poucas recompensas até agora. Untoja diz que está "embriagada pelo populismo. Mas isso não vai durar muito". Evo Morales conquistou apoio indígena com a promessa de uma Constituinte Soberana, que prometia redesenhar o Estado boliviano. No final das negociações entre os políticos, o projeto encolheu, transformando-se numa assembléia que terá poderes para produzir reformas constitucionais.

As lideranças indígenas têm dado sinais de impaciência - que ajudam a explicar a pressa do governo em baixar o decreto da nacionalização e agora preparar outro, da reforma agrária. Dias atrás, ao assinar um decreto de distribuição de terras, o ministro Jorge Ramos Quintana, que ocupa na Bolívia um cargo equivalente ao de chefe da Casa Civil, recebeu dezenas de indígenas em palácio com um apelo. "O governo vai cumprir os prazos combinados", afirmou. "Se não cumprirmos, vocês podem começar a organizar os protestos."