Título: Amazonas aposta na chuva para gerar saúde
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Nacional, p. A14,15

Projeto que recolhe água em casas flutuantes combate doenças graves

A Reserva Sustentável do Piranha, no município amazonense de Manacapuru, tem uma área de 103 mil hectares, cobertos por rios, lagos e várzeas. As casas de seus poucos moradores são adequadamente chamadas de flutuantes: construídas sobre troncos de pau-de-bóia ou pau-balsa, flutuam de um lado para outro do Rio Piranha conforme as estações do ano. Lembram a arca bíblica de Noé, por causa do costume das famílias de agregarem ao seu redor pequenas balsas para as criações. Na maior parte das vezes são galinheiros flutuantes. Mas também se vê cabritos, porcos, vacas. Algumas donas de casa ainda fazem flutuar canteiros com salsinha, cebolinha, pimenta. Uma delas tem até uma goiabeira, cujas folhas são usadas em chás para curar diarréia.

Há pouco mais de um mês, um novo objeto começou a ser incorporado a essas casas. São caixas destinadas a recolher a água da chuva. Feitas de fibra de vidro, com capacidade para mil litros, pintadas de azul vivo e instaladas quase sempre ao lado da janela da cozinha, podem ser vistas de longe.

Elas fazem parte de um programa público simples e barato destinado a atacar um preocupante problema de saúde da região: as doenças de veiculação hídrica, como hepatite A, febre tifóide e diarréias agudas provocadas por parasitas, entre elas amebíase e rotavírus.

O problema existe porque os moradores dos flutuantes bebem a água dos mesmos rios que usam como canal de esgoto. No período das maiores chuvas, de dezembro até maio, com o aumento da vazão das águas, o índice de doenças é menor. Mas ele se agrava na vazante, ou verão, quando lagos monumentais desaparecem e rios caudalosos ficam reduzidos a filetes d'água, como acontece com o Piranha. Nessa época, segundo João Barbosa da Silva, um dos líderes comunitários da reserva, a situação muda: "Muito peixe morre e a água apodrece, fica com mau cheiro, gosto ruim, mas, como não tem outra, a gente bebe assim mesmo."

Com chuvas sempre abundantes na região, os técnicos do programa conhecido como Prochuva, resultado uma ação coordenada entre a prefeitura e o governo estadual, com apoio da Petrobrás, propuseram aos moradores armazená-la para beber. Para isso eles teriam que trocar o sapê usado na cobertura das casas por placas de alumínio e instalar calhas.

Houve certa relutância inicial, porque a palha do sapê, embora abrigue baratas e outros insetos, deixa o interior das casas mais fresco do que o teto de metal. Mas quem aceitou fazer a experiência hoje está convencido de que fez bom negócio.

É o caso de Raimunda Silva, esposa do líder comunitário. Ela conta que antes levava suas vasilhas até o meio do rio, onde a água parece mais limpa, para se abastecer. "Dava muito trabalho e ainda era preciso coar a água, de tão suja que vinha", conta Raimunda. "Agora não. Tem até uma torneira de água limpinha dentro de casa."

O kit do Prochuva inclui um sifão que permite desprezar a primeira carga de chuva que cai sobre o teto, lavando-o. O conjunto custa em média R$ 450. Se for incluído o teto de alumínio, sobe para R$ 700.

Em famílias com cinco pessoas, a água do reservatório dura até 20 dias - mas ali raramente acontece de não chover nesse prazo. Para o caso de isso acontecer, o Prochuva está construindo poços artesianos para socorrer as famílias.

Os agentes de saúde recomendam dissolver hipoclorito de sódio na água das caixas, mas a maioria dos moradores prefere não fazê-lo. Alguns adaptaram uma espécie de coador de pano na entrada da caixa, para reter impurezas. Marilene Damasceno da Silva, de 36 anos, mãe de seis crianças, foi uma das primeiras a usar esse filtro improvisado e está feliz com o resultado: "A chega limpinha. É boa pra beber, coar um café, cozinhar. O sabor é muito melhor que o da água do rio. Tem gosto de água mineral."

No ano passado, segundo informações do setor de vigilância epidemiológica do Amazonas, foram registrados 56.971 casos de doenças diarréicas agudas no Estado. Como o Prochuva começou a ser implantado há pouco tempo, ainda não existem estudos demonstrando o quanto pode contribuir para a redução das doenças.

Mas na escola da comunidade, que também flutua e à qual os alunos chegam em canoas, o professor José Maria Dias da Silva, de 38 anos, já tem o que comemorar: "As crianças estão faltando menos às aulas. Diminuiu o número de casos de de diarréia, de crises de vômito."