Título: Um alerta para o Itamaraty
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2006, Notas e Informações, p. A3

O que é bom para o Brasil pode não ser bom para os africanos e isso pode ter conseqüências na rodada global de negociações comerciais, avisou em Genebra o ministro do Comércio do Egito, Rachid Mohamed Rachid. Essa declaração vale como um alerta, num momento crucial da Rodada Doha, quando os negociadores da União Européia, dos EUA e do Brasil tentam romper impasses para chegar a um acordo mínimo sobre o comércio de produtos agrícolas e industriais. Brasileiros, americanos, europeus e indianos têm trabalhado paralelamente às negociações oficiais, como se pudessem criar as bases de um entendimento entre os 149 países membros da OMC. Não se iludam, porque os africanos têm interesses peculiares e não se vêem representados pelas grandes economias emergentes.

"Pode repetir-se o que ocorreu em Cancún", disse o ministro egípcio, referindo-se ao fracasso da conferência ministerial da OMC realizada no México em 2003. Ele não explicou essa afirmação, mas o sentido parece claro. Naquela reunião, o colapso final foi provocado por um desentendimento entre africanos e europeus a respeito de temas que poderiam ou não constar da Rodada Doha. O impasse foi de certa forma inesperado, porque os principais embates, até aquele momento, haviam ficado por conta dos EUA e da União Européia, de um lado, e o Grupo dos 20 (G-20), de outro.

Formado pouco antes da conferência, por iniciativa brasileira, o G-20 reuniu emergentes, incluído o Egito, e pobres interessados na eliminação de barreiras e subsídios ao comércio agrícola mantidos pelos países ricos. O Brasil só tem liderança no G-20, que trata apenas de agricultura, disse nesta quarta-feira o ministro Rachid Mohamed Rachid. Esse comentário, no entanto, só descreve parcialmente a situação. Mesmo em relação à agricultura os interesses brasileiros coincidem apenas parcialmente com os objetivos dos africanos. Estes países têm sido beneficiados, com economias pobres do Caribe e do Pacífico, por facilidades especiais de acesso ao mercado europeu. Com a liberalização pretendida pelo Brasil e outros produtores competitivos, aqueles países perdem a relação favorecida com a União Européia.

Os africanos, disse o ministro egípcio, não terão vantagem adicional com as negociações conduzidas pelo Brasil com a União Européia. Na verdade, poderão ser prejudicados. "Na realidade, os países africanos acham que Brasil, China e Índia vão competir para tomar fatias de seus mercados." Não há uma efetiva comunidade de interesses nem no caso da agricultura nem nas negociações a respeito do comércio de bens industriais.

O risco de impasse e de um novo colapso das negociações é muito maior, portanto, do que pode parecer à primeira vista. EUA e União Européia divergem quanto à extensão das concessões que devem fazer em matéria de comércio agrícola. A redução de tarifas oferecida pelos europeus é bem menor que a proposta pelos americanos. Os europeus, em contrapartida, acusam os americanos de tentar manter subsídios indiretos à exportação, depois da eliminação das subvenções explícitas.

Os brasileiros cobram de ambos propostas mais amplas de liberalização do comércio agrícola, mas são pressionados a apresentar melhores ofertas de abertura para o comércio de manufaturados e para os serviços. A Índia tem atuado ao lado do Brasil em boa parte dessas negociações, mas também os interesses dessas duas economias são em parte divergentes. Seus negociadores têm conseguido, até agora, deixar as diferenças em segundo plano. Mas suas posições, como deixou mais claro do que nunca o ministro do Comércio do Egito, não representam as pretensões africanas.

Esse alerta do negociador egípcio não deve causar nenhum desconcerto aos indianos e chineses. Para o governo brasileiro, no entanto, é mais um golpe em sua pretensão - ou ilusão - de atuar na linha de frente de uma grande coalização dos países do Sul contra os do Norte rico e dominador. Esse romântico Sul, definido por uma ampla comunidade de interesses políticos e econômicos, só existe no discurso anacrônico da atual diplomacia brasileira.