Título: Assaltos ao orçamento
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Notas e Informações, p. A3

Não é a ocasião sozinha que faz o ladrão, mas não há dúvida de que contribui para fazer. Este é um bom argumento para se mudar o sistema orçamentário brasileiro, muito vulnerável à ação de malandros. A denúncia de mais assaltos praticados ou facilitados por um bando de congressistas - a turma dos "sanguessugas" - pode ter provocado indignação, mas não surpresa. Ninguém se espanta diante de uma nova lambança praticada por senadores ou deputados, nem mesmo quando é grande o número de envolvidos. Há dois fundamentos para isso. O primeiro é a imagem da chamada classe política. Não adianta dizer que é injusta. Essa imagem não é gratuita nem se formou de um dia para outro. O segundo fundamento é mais complexo e mais profundo: o Orçamento-Geral da União deveria ser apenas um instrumento de políticas públicas, mas não é. É essa, no fundo, a questão mais importante.

Os parlamentares estão habituados a utilizar o Orçamento para fins particulares. Apropriam-se de recursos públicos, por meio de emendas, para favorecer clientelas e atender a interesses corporativos e eleitorais. Durante o processo, dá-se pouca importância à qualidade dos projetos. O apoio às emendas é em geral barganhado. Cada qual busca a ajuda necessária para fazer passar sua proposta. Milhares de emendas são apresentadas, todo ano, e quem se importa, de fato, com a qualidade daquilo que está apoiando? A regra é viver e deixar viver.

A bandalheira, como no caso das ambulâncias, é apenas uma forma extrema de privatizar bens públicos. Desperta clamor, quando vem à luz, por ser uma ação criminosa ou indisfarçavelmente imoral. A tentação é grande, quando tanto dinheiro está à disposição para ser manipulado. A possibilidade de êxito é considerável e o risco é pequeno. A manobra nem sempre dá certo, porque a liberação do recurso depende do Executivo. Mas a fiscalização é escassa e pouco eficiente - o risco vale a pena, segundo a avaliação dos malandros. E eles entendem do assunto.

Mas o crime, nesse caso, é facilitado por uma distorção política. O processo orçamentário é mal concebido, mas serve com perfeição a políticos que se comportam como vereadores federais. É irracional, do ponto de vista da gestão pública, permitir que o dinheiro dos impostos seja pulverizado em centenas ou milhares de projetos desconexos. Mesmo sem falcatruas, o processo resulta num enorme desperdício de recursos.

Não tem sentido o Tesouro Nacional financiar dessa forma despesas típicas de poderes municipais ou estaduais. Todo gasto federal, é verdade, acabará ocorrendo nos Estados e municípios, seja qual for a forma da despesa. Mas a perspectiva do poder central deve ser diferente, por definição, do ponto de vista dos governos estaduais ou locais. O problema decerto seria menos grave se um número maior de parlamentares fosse capaz de entender as atribuições do legislador federal. Mas o número de capazes é pequeno.

Um veterano político, o senador Ney Suassuna, disse numa entrevista ao jornal Valor que sua função é "levar emendas" para o Estado da Paraíba. De uma forma pitoresca, ele resumiu um ponto de vista que parece dominante no Congresso Nacional. Discutir, formular e propor prioridades nacionais deveria ser a função do Legislativo federal. Um orçamento bem concebido deveria refletir essa atividade. As políticas para regiões e para Estados, se fosse esse o caso, seriam resultado desse trabalho sério.

A incapacidade visceral de entender e de cumprir corretamente a função legislativa abre espaço para outra distorção, característica da política brasileira. Há no Brasil - como em toda parte - uma tendência à hipertrofia do Executivo. Aqui, essa tendência se reflete, em parte, no abuso das medidas provisórias e no risco permanente da ação autoritária.

Não por acaso, a palavra "governo" é usada correntemente, no Brasil, como sinônimo de Executivo. A linguagem, nesse caso, é especialmente reveladora, pois denuncia com clareza um dos pontos fracos da democracia brasileira. Nada mais natural, quando muitos parlamentares entendem que a função do legislador, num sistema democrático, é obter benefícios para clientelas e brigar por fatias, ou até por migalhas, de um orçamento federal.