Título: O gás da Bolívia - que futuro?
Autor: Luiz Felipe Lampreia
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Acompanhei, com perplexidade, a crise que levou à nacionalização da Petrobrás Bolívia no dia 1º de maio. Foi um capítulo infeliz de uma longa história. Façamos um breve retrospecto. Desde a década de 1930 houve estudos e controvérsias sobre a compra de petróleo da Bolívia. Em 1965, o general Ernesto Geisel, na qualidade de secretário do Conselho de Segurança Nacional, vetara qualquer iniciativa sob o argumento de que a instabilidade boliviana poderia confrontar-nos com situações perigosas se estabelecêssemos uma dependência energética. Depois, em 1972, como presidente da Petrobrás, considerara que o crescimento econômico brasileiro criara tal pressão de demanda de gás natural e derivados que valia a pena buscar um acordo que desse à Bolívia garantias e vantagens capazes de criar um vínculo inabalável de interesses compartilhados. Participei pessoalmente dessa negociação, que conduziria ao acordo de Cochabamba, assinado em 1974 pelo próprio Geisel, já presidente da República. Este tratado era uma verdadeira bonança para a Bolívia, pois previa não apenas a compra de gás natural em quantidades muito importantes, mas também de uréia, ferro-gusa e eletricidade, resultantes de processamento do próprio gás. Mas nunca entrou em funcionamento, malgrado o interesse continuado do Brasil, porque uma oposição tenaz na Bolívia, liderada pelo atual ministro de Hidrocarbonetos, Solis Rada, bloqueou sua implementação, mesmo indo contra a forte posição do presidente Hugo Banzer, que o assinara pela Bolívia.

O Brasil fez outras opções energéticas e econômicas e a questão ficaria congelada até fins da década de 80. A Bolívia saíra de um ciclo de profunda instabilidade política e econômica com a presidência de Paz Estenssoro e nosso país também emergira de sua crise econômica da dívida externa e do regime autoritário. Em poucos anos conseguimos encontrar um caminho crítico que levaria, em 1997, à assinatura dos contratos de compra e venda do gás, que testemunhei como ministro das Relações Exteriores do presidente Fernando Henrique Cardoso.

A Petrobrás pôs mãos à obra com sua enorme eficiência, encontrou imensas reservas de gás, viabilizou sua extração e o transporte para o Brasil, ajudou a criar uma demanda consistente para este combustível onde não havia quase nenhuma, investindo quase US$ 1,5 bilhão com fundamento em contratos legais e muito claros. Com isto se definiu um programa estratégico que, antes de mais nada, visava a promover um forte vetor de integração energética na América do Sul. Hoje o gás natural já tem peso relevante em nossa matriz energética e abastece incontáveis lares e indústrias brasileiros. Portanto, transformou-se em ativo estratégico e sua proteção, em matéria de interesse nacional prioritário.

A crise, que vinha crescendo há dois anos, desembocou no ato arbitrário de 1º de maio, com o anúncio da nacionalização e a absurda ocupação militar das instalações da Petrobrás. Sobre o significado do agravo e sobre a avaliação do governo brasileiro na defesa de nossos interesses já houve análises, comentários e definições brilhantes na mídia nacional. Não repetirei o que disseram alguns de nossos mais experientes e lúcidos diplomatas, meus colegas: subscrevo suas palavras integralmente. O essencial agora é dialogar com firmeza e ver como melhor podemos evitar graves prejuízos para a Petrobrás e o Brasil. O que fazer?

Em primeiro lugar, a Petrobrás deve ser incumbida de negociar todas as questões sobre a mesa com a mais clara cobertura política do governo brasileiro. Estão em aberto pontos fundamentais como as indenizações pela expropriação de seus ativos, os novos preços do gás e o suprimento do Brasil. Se as autoridades bolivianas sentirem que a Petrobrás não tem este respaldo, será muito difícil resistir ao diktat boliviano e o Brasil e os acionistas da Petrobrás poderão sofrer conseqüências sérias.

Em segundo lugar, é essencial definir os contratos vigentes como a pedra angular da questão e como nosso perímetro defensivo básico. Neles há mecanismos para proceder à alteração de cláusulas de preços e um sistema claro, de padrão internacional, para dirimir conflitos de interpretação. Devemo-nos ater ao respeito dos tratados e contratos como ponto inegociável. É preciso rechaçar com vigor o argumento de que os contratos não são legais, até porque teriam sido assim questionáveis todos os atos decorrentes deles, mesmo o pagamento de impostos ao governo boliviano pela Petrobrás Bolívia.

Em terceiro lugar, a Petrobrás não pode ser cerceada em iniciativas que venha a tomar "para defender todos os seus direitos", como seu presidente afirmou corajosamente que faria. Se, como indicam as declarações públicas de diversas autoridades bolivianas, não houver margem para entendimentos bilaterais, nossa empresa deve recorrer às instâncias arbitrais previstas nos contratos em busca de segurança jurídica internacional.

Em quarto lugar, é essencial garantir o abastecimento do Brasil. Hoje consumimos cerca de 42 milhões de m3 de gás por dia, sendo 26 milhões da Bolívia. Mesmo usando as alternativas disponíveis a curto e médio prazos, o gás boliviano é muito importante para o País hoje. Sem ele pode haver sérios inconvenientes, em especial no Estado de São Paulo.

Em quinto lugar, devemos deixar claro pública e inequivocamente ao presidente da Venezuela que sua intromissão constante nesse episódio é um ato inamistoso com o Brasil. Sua Chancelaria já começou a fustigar uma primeira manifestação pública de desconforto feita em boa hora pelo ministro Celso Amorim. Como Hugo Chávez já demonstrou amplamente sua capacidade de se indispor com seus vizinhos, é de presumir que tampouco se constrangerá no caso do Brasil. É preciso ser firme na posição.

Se não seguirmos este caminho, duvido que possamos restabelecer uma relação com a Bolívia que tenha um mínimo de estabilidade e racionalidade. E, se falharmos, teremos, a curto prazo, de encontrar alternativas para substituir a Bolívia, nosso vizinho de maior fronteira, como parceiro energético, o que seria um retrocesso dramático.

Luiz Felipe Lampreia, embaixador aposentado, foi ministro das Relações Exteriores (1995-2001)