Título: Invasor conserva patrimônio abandonado
Autor: Irany Tereza
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2006, Economia & Negócios, p. B18

A casa da família Silva tem o estilo futurista das construções projetadas por Oscar Niemeyer, paredes e teto de concreto que lembram um bunker e grandes portas de aço blindado, como uma fortaleza. O aposentado Antonio da Silva, sua mulher, Nelci, e os quatro filhos - três garotas e um menino - até já se acostumaram com o imenso transformador de eletricidade no quintal. Há 4 anos, eles invadiram uma subestação de energia elétrica da Rede Ferroviária Federal S.A. em Iperó, a 125 quilômetros de São Paulo e a transformaram na casa deles.

Graças à invasão, o prédio continua em pé, bem conservado, e o transformador não foi roubado. Centenas de construções das antigas ferrovias de São Paulo incorporadas pela Rede desapareceram ou viraram ruínas. Todo material aproveitável, incluindo fiação elétrica e transformadores, foi saqueado. O que se salvou até agora são imóveis usados pelas prefeituras ou ocupados quase sempre por ex-ferroviários.

Silva sabe que é um invasor, mas não deixa ninguém tirar nada. "O que é nosso é nosso, o que é deles (Rede), quando pedirem a gente desocupa". Ex-agricultor, ele chegou com a família de Londrina, não tinha onde morar e se alojou no prédio que estava desativado.

"Queria arrumar emprego e comprar uma casinha, mas o coração não deixou e vou ficando por aqui." Encostado na Previdência por doença cardíaca, vive do salário mínimo da pensão e cuida da casamata como se fosse sua. "Aqui ninguém estraga nada".

Aconteceu com o outrora imponente edifício da estação da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), ali mesmo, em Iperó, ao lado da subestação dos Silva, que ficou muitos anos sem uso. O prédio de 2,4 mil metros quadrados está todo depredado. Placas, grades, bancos e objetos de metais foram levados. Restaram as paredes pichadas e as tesouras de ferro que sustentam o telhado. No interior dos cômodos, o lixo se mistura com fezes e urina. Até o azulejo foi arrancado.

"Aqui era a praça da cidade, o lugar onde os jovens faziam o footing, andando pelas plataformas", conta o ferroviário aposentado Airton dos Santos. Nos feriados e horas vagas, ele se instalava ali com carrinhos de pipoca e pamonha. "Paravam trens dos dois lados e o movimento de passageiros era grande."

No pátio de manobras, só as duas linhas usadas pela Ferroban estão bem conservadas. Pilhas de dormentes novos indicam que o serviço de manutenção continua. "Mas não temos nada com os prédios e esses trens", disse um funcionário que não quis se identificar.

Mais de 100 vagões viraram sucata e entopem o pátio. De alguns, atacados por sucateiros, só restou a carcaça com a mensagem "devolver para a RFFSA". Os moradores dos bairros Santo Antonio e Novo Horizonte, isolados pela linha férrea, pulam entre os vagões para chegar ao centro. "Fica mais fácil cortar o caminho para ir ao banco", diz a dona de casa Leid Jane Sobral de Souza, puxando dois filhos pequenos pelos trilhos. Casada com um ex-ferroviário, ela mora numa casa da ferrovia. "São mais de 15 e estão todas ocupadas", conta.

O motorista desempregado Luis Carlos Amorim ocupa uma das 7 casas da Rede no distrito. O tio também era ferroviário e, quando ficou doente, chamou os familiares que moravam em São Paulo. "Nosso tio já se foi (morreu) e nós continuamos aqui." Ele já ouviu comentários de que a Rede pediria o despejo dos moradores. "Se propuserem um pagamento pela casa, a gente estuda".