Título: O programa do gás
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2006, Economia & Negócios, p. A3

Apesar das desfeitas e agressões gratuitas, o presidente Evo Morales é credor da gratidão dos brasileiros. Não fosse por ele, a Petrobrás não teria começado a se mexer para explorar comercialmente os campos de gás natural descobertos na plataforma continental, nem estaria estudando a construção de plantas de regaseificação para processar o gás importado em navios - tudo isso, em resumo, significando a redução da dependência de uma única fonte de suprimento do combustível.

Com esse programa de trabalho, que foi aprovado pelo Conselho Nacional de Política Energética, a Petrobrás poderá cumprir as metas de expansão do fornecimento de gás. A empresa pretendia ampliar a capacidade de transporte do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol) em 15 milhões de metros cúbicos por dia, mas cancelou os investimentos no momento em que o presidente Evo Morales expropriou os ativos da Petrobrás na Bolívia.

A Petrobrás tardou a explorar as jazidas de gás que descobriu durante as pesquisas em busca de petróleo. E assim o gás, durante décadas, foi pouco mais que um traço na matriz energética brasileira. E mesmo quando, na administração passada, o governo federal decidiu ampliar a participação do combustível na matriz, a Petrobrás preferiu fiar-se nos acordos com a Bolívia a começar a explorar amplamente as jazidas do litoral.

Caracterizada a instabilidade do fornecimento do gás boliviano - e constatadas as inconveniências óbvias da dependência de uma única fonte -, a Petrobrás parte em busca do tempo perdido. Para garantir abastecimento farto e a preços razoáveis de gás natural, a empresa agirá em duas frentes.

Uma é a construção de três plantas de regaseificação, para poder importar, numa primeira etapa, algo em torno de 5 a 8 milhões de m3 diários, até cobrir os 15 milhões de m3 que seriam obtidos com a expansão da capacidade do Gasbol. A outra é a produção de 24,2 milhões de m3 por dia, dos campos descobertos nas Bacias de Campos e do Espírito Santo.

Também para aliviar a pressão da demanda por gás - o consumo atual é de cerca de 50 milhões de m3/dia, com previsão de 100 milhões em 2010 -, o Conselho Nacional de Política Energética decidiu autorizar a substituição do gás natural pelo álcool, nas usinas de geração termoelétrica que complementam o abastecimento de eletricidade nos horários de pico. Se isso for tecnicamente viável, imagina-se reduzir a dependência do combustível importado e criar um mercado adicional para os produtores de cana e álcool.

A Petrobrás alegava não ter condições técnicas para ampliar a oferta de gás. Haveria no mercado mundial escassez de equipamentos, tanto para extrair, processar e transportar o gás da plataforma continental como para montar plantas de regaseificação. No primeiro caso, não se poderia produzir gás em quantidade comercialmente significativa antes de seis a oito anos; no segundo caso, a demora seria de dois anos.

As decisões do presidente Evo Morales obrigaram a Petrobrás a rever seus planos. A estatal estuda, agora, importar gás da Nigéria, Argélia, Angola, Catar e Trinidad e Tobago e instalar as plantas de regaseificação em menos de metade do prazo inicialmente previsto. A exploração dos campos da plataforma continental, que não poderia ser feita antes de seis a sete anos, agora tem um prazo de dois anos para produzir 24,2 milhões de m3 por dia.

Dinheiro para a execução desse plano não parece ser um problema. As plantas de regaseificação custarão algo entre US$ 100 milhões e US$ 300 milhões - o que cabe com folga na previsão dos gastos que seriam feitos no gasoduto boliviano. E, para os investimentos restantes, a Petrobrás já tinha um orçamento de R$ 16 bilhões, para o período 2006-2010.

De qualquer forma, esse é um investimento com retorno certo e relativamente rápido. O mercado do gás, no Brasil, tem um potencial de crescimento de 20% ao ano. Se isso não bastasse, o programa aprovado pelo Conselho Nacional de Política Energética tem a vantagem adicional de garantir a segurança do abastecimento de um combustível cada vez mais procurado pela indústria, por ser barato e pouco poluente. E livra o Brasil da dependência de um único fornecedor estrangeiro - dependência que já se provou nefasta para os interesses nacionais, até porque a Bolívia se comprometeu, pelo Tratado de Comércio dos Povos, a fornecer os seus excedentes de energia à Venezuela e a Cuba, e não ao Brasil.