Título: IBGE diz que 14 milhões de brasileiros passam fome
Autor: Robson Pereira
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/05/2006, Nacional, p. A6

São 7,7% da população em situação de insegurança alimentar grave, de acordo com levantamento feito a pedido de ministério

A promessa de garantir três refeições diárias a todos os brasileiros, várias vezes repetida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está longe de se tornar realidade. A comprovação da distância entre intenção e realidade foi divulgada ontem pelo IBGE. Estudo inédito revelou que mais de 3,3 milhões de famílias em todo o País convivem de forma rotineira com o pesadelo da fome. Ao todo, 14 milhões de brasileiros, número equivalente a 7,7% da população, vivem no que o instituto chama de ambiente de insegurança alimentar grave. Em outras palavras, passam fome. Deixam de comer por absoluta falta de dinheiro para comprar alimentos.

O estudo, chamado Segurança Alimentar, foi realizado por encomenda do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. A principal novidade está na metodologia usada, que permitiu, pela primeira vez, identificar e contar o número de pessoas em diferentes estágios de risco alimentar. O novo método enterra de vez as estimativas anteriores usadas com alarde, mas sem respaldo técnico.

O estudo identifica não apenas aqueles que passam fome, mas também os que convivem com a preocupação de eventual falta futura de comida. Essas pessoas são consideradas em estado de insegurança alimentar leve, moderada ou grave. Existem 18 milhões de residências nessa situação. Nelas, moram 72 milhões de brasileiros, quase 40% da população do País. Nos dois últimos degraus, estão cerca de 40 milhões de pessoas (22% da população total), que enfrentavam à época da pesquisa (último trimestre de 2004) "limitação de acesso quantitativo a alimentos básicos".

Para a pesquisadora da Unicamp Ana Maria Segal, pioneira no uso do método, em um estudo restrito à região de Campinas o nível moderado da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) configura um quadro de restrição na quantidade de alimentos que pode ou não caracterizar uma situação de fome, condição que ela considera "bastante provável", principalmente entre os adultos. "Mas na insegurança grave, o quadro é mesmo de fome, independentemente da presença ou não de crianças no domicílio", afirmou.

Os Estados do Norte e do Nordeste, mais uma vez, lideram a trágica estatística: mais da metade da população dessas regiões mora em domicílios onde a quantidade de alimentos disponíveis é insuficiente para garantir a sobrevivência em condições mínimas de dignidade. O Maranhão, com 18% dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave, lidera o ranking da fome, seguido de perto por Roraima (15,8%) e Paraíba (15,1%).

Santa Catarina, com 2%, São Paulo, com 3,4%, além de Paraná, Rio de Janeiro e Sergipe, todos com 3,7%, compõem o bloco dos cinco Estados que apresentam a menor proporção de domicílios onde a fome é mais do que uma ameaça.

Para o secretário de Avaliação e Gestão do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Rômulo Paes de Sousa, "não há surpresas" em relação ao perfil da desigualdade brasileira. "Há décadas sabemos quem são, mas só agora, com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, ficamos sabendo quantos são e o quanto eles estão em situação desfavorável."

Apesar de destacar a importância do estudo, Souza ressaltou que a escala "é a fotografia" de um momento. "Naquela época, existiam 5,7 milhões de domicílios cadastrados no Bolsa Família, que hoje já atende a 9,1 milhões de famílias." A expectativa do governo, diz ele, é que em dezembro o programa atinja 11,1 milhões de domicílios, o que representa o universo estimado para as famílias com renda per capita domiciliar de até R$ 120 por mês.

REPASSES

Duas em cada três famílias em situação de insegurança alimentar (66%) receberam dinheiro de pelo menos um programa social do governo no mês em que foi realizada a pesquisa. Para 15% delas, o repasse não foi suficiente para impedir que ao menos uma pessoa no domicílio passasse fome, segundo os números divulgados ontem pelo IBGE.

A pouca eficácia dos repasses sociais, pelo menos à época da pesquisa, fica mais clara no Norte e no Nordeste, regiões mais beneficiadas pelas ações de transferência de renda. Em ambas, 73% das famílias com déficit alimentar recebiam benefícios sociais, de acordo com a Ebia.

Sousa não vê contradições nos números. "Em 2004 havia um contexto de transferência de renda diferente do atual." Segundo ele, naquela ocasião existiam cinco programas diferentes, e o Bolsa Família estava apenas no começo. "No ano passado houve uma forte racionalização, com a migração de vários desses programas para o Bolsa Família, e isso não está refletido no estudo", justificou.