Título: Crise esvazia reunião Mercosul-UE
Autor: João Caminoto, Tania Monteiro
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2006, Economia & Negócios, p. B6

Um a um, presidentes do Cone Sul deram desculpas para não participar, só sobrou Lula e encontro foi cancelado

Sinal evidente da mais séria crise enfrentada pelo Mercosul desde a sua criação, há 15 anos, os presidentes dos países do bloco cancelaram o encontro de cúpula que teriam hoje com seus pares europeus. Tradicionalmente realizada em paralelo à Cúpula União Européia-América Latina, a reunião teria o objetivo de dar um impulso político às negociações do acordo de livre comércio entre os dois blocos, retomadas neste ano depois de18 meses de estagnação.

O cancelamento se deu ao final de uma curiosa situação em que, ao longo da semana, cada um dos líderes do Mercosul foi desistindo do encontro. O primeiro foi Tabaré Vazquez, do Uruguai, que anunciou sua ausência por conta da guerra da celulose entre seu país e a Argentina. Tabaré não queria encontrar o presidente argentino, Néstor Kirchner, face a face. O clima entre eles é tão ruim que, ontem, durante a tradicional foto oficial dos chefes de Estado e governo que participam do encontro em Viena, ambos se esquivaram de um cumprimento.

O presidente do Paraguai, Nicanor Duarte Frutos, foi o segundo a desistir.

Por fim, Kirchner, que está na presidência do bloco, considerou irrisório manter a reunião ao lado só de Luiz Inácio Lula da Silva e avisou que voltaria antes.

Como sobraria apenas para Lula, a saída diplomática foi transformar o evento em um encontro ministerial que, do lado brasileiro, será conduzido pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Questionado sobre o cancelamento, Lula disse à imprensa que já estava informado antes de partir de Brasília, na quinta-feira.

O incidente, porém, acentuou o ceticismo entre os europeus sobre a possibilidade de o Mercosul conquistar uma unidade política suficiente para tornar viável um acordo comercial com a UE. Deixou clara a incapacidade do Mercosul em solucionar seus conflitos internos e de alcançar acertos que disciplinem, por exemplo, os investimentos. Por fim, reavivou a percepção de que o bloco sofre da indisposição dos quatro sócios em ceder parcelas da soberania de seus países em benefício de um projeto maior de integração.

Além disso, a UE já havia se mostrado preocupada com a possibilidade de o Uruguai negociar um acordo comercial com os Estados Unidos. Montevidéu já avisou que, se necessário, abandonará o Mercosul para pô-lo em prática. Da mesma forma, os europeus comunicaram sua incompreensão com o processo de adesão da Venezuela como membro pleno, justamente quando ela abandona a Comunidade Andina de Nações (CAN).

A presença da Venezuela no Mercosul, sob a ótica de Bruxelas, poderá politizar o bloco - avaliação acentuada pela crise deflagrada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, na CAN, que impossibilitou o lançamento de negociações de livre comércio desse bloco com a UE na Cúpula de Viena. "Continuamos dispostos a negociar com a Comunidade Andina, mas cabe a eles decidirem se querem ou não", afirmou a comissária européia para Relações Exteriores, Benita Ferrero-Waldner, ressaltando, em seguida, os resultados positivos dos acordos bilaterais firmados entre a UE e o México e Chile.

Estava claro que a reunião dos líderes do Mercosul e da UE não resultaria em avanços concretos, pois dependem da conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, que vive um impasse. Mas a expectativa entre os europeus era de que o encontro poderia pelo menos revitalizar as perspectivas futuras de um acordo, com um comunicado incisivo garantindo o compromisso dos dois blocos em concluir as negociações. O Itamaraty alimentava expectativa semelhante.

'MOTOR DA INTEGRAÇÃO' Questionado sobre as fragilidades do Mercosul, Amorim sustentou que o bloco "continua a ser o motor da integração sul-americana" e argumentou que também na UE há crises entre seus sócios.

Ele disse ainda que o Brasil não se opõe a um acordo de preferências comerciais entre o Uruguai e os EUA, desde que não envolvam a discussão de programas de redução de tarifas. "Isso não pode haver."

A reunião ministerial deverá resultar numa declaração final com um de compromisso mútuo com o progresso nas negociações. Mas, como definiu um diplomata argentino, "ela servirá só para tentar salvas as aparências".

A única notícia positiva anunciada por Bruxelas foi a abertura de negociações para a criação de uma área de livre comércio entre a Europa e a América Central. A decisão foi estampada na declaração final da Cúpula.