Título: O câmbio e o cavalo
Autor: Lídia Goldenstein
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2006, Economia & Negócios, p. B2

A atual política cambial brasileira me lembra a piada do cidadão que possuía um cavalo e resolveu ensiná-lo a ficar sem comer. Cada dia reduzia um pouquinho sua ração. Pena que, quando o cavalo já estava quase aprendendo a viver sem comer, misteriosamente morreu.

Várias declarações recentes do presidente do Banco Central e diversos papers e artigos de acadêmicos parecem acreditar em cavalos que vivem sem comer. Para eles, se for verdade que o atual câmbio do Brasil está fora do "equilíbrio", coisa que duvidam, não existe problema algum. "Naturalmente" o câmbio se ajustará por intermédio do aumento das importações.

Grosso modo a coisa funcionaria assim: como o dólar está barato, os importadores seriam incentivados a ampliar suas importações. Para tal, comprariam os dólares excedentes no sistema e, desta forma, adequariam a oferta e demanda de dólares até o novo ponto de equilíbrio.

Perfeito. O que o presidente do Banco Central não leva em conta é o tempo que este ajuste levaria para ocorrer e o que acontece com o lado real da economia enquanto isso. Mais ainda, esquece que os processos e as decisões de investimento no setor produtivo não têm o imediatismo dos processos e decisões no mercado financeiro, em que de um dia para outro ou até mesmo em questão de minutos se pode trocar de posição.

No setor produtivo os tempos são outros, para o bem e para o mal. Em outras palavras isso quer dizer que, se de um lado o custo da política cambial demora um certo tempo para aparecer, de outro, quando aparece, seus efeitos são mais profundos e duradouros, não sendo nem fácil nem imediatamente corrigidos por um ajuste no câmbio.

No cenário brasileiro atual, a situação é ainda mais perversa, pois alguns fatores têm contribuído para amortecer e/ou adiar as conseqüências da valorização do câmbio, dando argumentos para as autoridades manterem a atual política.

O impacto do câmbio valorizado está demorando muito para aparecer na balança comercial por vários motivos. Antes de tudo, porque a demanda externa está muito aquecida - o volume do comércio mundial cresceu 10,7% em 2004, 7,2% em 2005 e deve crescer 8% em 2006 -, permitindo, em alguns casos, reajustes de preços compensatórios. Em segundo, porque os exportadores demoraram muito tempo e fizeram muito esforço para conquistar mercados e preferem arcar com reduções de margem por um período, na esperança de uma mudança na política cambial. Além do mais, não só as baixas taxas de crescimento do País, como também a elevada carga tributária que recai sobre as vendas domésticas não resultam num mercado interno atrativo, ao contrário.

Também têm contribuído para a manutenção de elevados superávits comerciais as exportações de petróleo e derivados, que cresceram 111,5% no primeiro trimestre de 2006, em comparação com o de 2005. Sem essas exportações a deterioração de nosso superávit comercial já seria mais visível: as taxas de crescimento vêm caindo e estamos voltando a concentrar as exportações em commodities, produtos muito mais suscetíveis às oscilações do mercado internacional.

Pelos livros-textos, com a queda das exportações e a ampliação das importações, o câmbio deveria voltar a um "bom equilíbrio" e, com isso, tudo voltaria à normalidade, com a vantagem de uma maior abertura da economia, que garantiria maior eficiência das empresas aqui instaladas. O problema é que enquanto isso mercados estão sendo ocupados por outros países e investimentos deixando de ser realizados aqui. A China, que não aparece nos livros-textos, avança celeremente "roubando" mercados do Brasil tanto aqui como no exterior.

Com a demora da mudança na política cambial, as empresas vêm mudando suas decisões de investimento, abandonando novos investimentos para ampliação da capacidade exportadora ou, as que têm fôlego para tal, optando por investir em outros países. Não existe a menor dúvida de que, em algum momento, estas decisões aparecerão na balança comercial do País. Quando e com que violência depende da capacidade de o cavalo ficar sem comer.