Título: Danos do esquecimento
Autor: Marco Antonio Rocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2006, Economia & Negócios, p. B2

A frase antológica da última semana trouxe a assinatura do ministro Guido Mantega: "A pena é que o dólar está caindo."

Cremos que nenhum dos ministros que o antecederam, até onde nos leva a memória, teve oportunidade de assistir a uma queda do dólar. E, mesmo que tenham tido, a receberiam como um bafejo dos céus.

O público que assiste à televisão, ouve rádio e gosta de ver o dólar lá em baixo deve ter estranhado e pensado se o ministro não se teria atrapalhado nas palavras, feito da alegria tristeza ou vice-versa.

Não, não foi nada disso, certamente. Na verdade, o que o ministro queria manifestar era sua preocupação ou tristeza com os aborrecimentos que um dólar baixo lhe traz, pensando nas pressões de exportadores e produtores rurais, principalmente, para que faça alguma coisa para elevar a cotação do dólar, uma vez que a conversão do câmbio lhes está propiciando cada vez menos reais pelos mesmos dólares.

Verdade: nas 24 horas que antecederam a fala do ministro, os exportadores puderam obter R$ 2,4 por cada dólar vendido - ou apenas R$ 2,29, dependendo do momento em que fecharam o câmbio.

Esse é o grande problema do câmbio flutuante para quem negocia ou se financia em moeda estrangeira: ele flutua. E tanto pode flutuar para cima como para baixo.

Só que, numa fase já mais ou menos longa, o dólar, no Brasil, vem flutuando para baixo e remunerando cada vez menos em reais os exportadores - que pressionam o governo. Em parte eles têm obtido compensações, seja pelo aumento das vendas com a expansão da demanda externa, seja por poderem reputar melhores preços para seus produtos, seja por encontrarem novos mercados mais lucrativos do que os tradicionais.

No que concerne à macroeconomia, ainda não houve, digamos assim, prejuízos. O velho fantasma do déficit em transações correntes parece ter sido exorcizado (nunca se sabe se em caráter definitivo, mas bem exorcizado). O fato é que temos acumulado superávits nesse item, graças, em boa parte, aos superávits da conta de comércio, que poderia sofrer um baque sério caso os exportadores desistissem do esforço de vendas externas por causa das dificuldades com o dólar.

Mas o que aconteceu na semana passada foi, em parte, resultado de uma iniciativa arriscada do governo. Uma coisa que já deveria estar entranhada na cabeça de todas as autoridades monetárias brasileiras é que não podemos ter facilitário para o hot money e muito menos depender grandemente de empréstimos em moeda estrangeira, como fizemos em passado não remoto.

As autoridades brasileiras, no entanto, se esquecem disso com freqüência. Achando que não haveria turbulências no mercado financeiro internacional a curto prazo, como ainda recentemente proclamavam em entrevistas, quiseram aproveitar-se da calmaria, da queda do risco Brasil e de outros fatores favoráveis para obter um dinheiro extra para rolar a dívida pública. Isentaram de Imposto de Renda investidores estrangeiros que aplicassem em títulos brasileiros. É claro que apareceram interessados. Porém, no primeiro momento em que irrompeu uma turbulência no mercado externo, inesperada (como são todas elas, aliás), os detentores desses papéis quiseram pular fora do barco de uma vez só, vender os papéis para comprar dólares.

Mas, como acontece com toda avalanche de vendas, não havia compradores em quantidade suficiente para todos os papéis. Resultado: Bolsa em queda, dólar em alta e o Tesouro tendo de entrar de Papai Noel, comprando os títulos vendidos com o objetivo de "alongar o perfil da dívida" e que deveriam ficar nas mãos dos seus detentores por prazos longos. Havia títulos com vencimento em 2045 emitidos em fevereiro que tiveram de ser resgatados em maio.

Hoje em dia não há mais como alongar o perfil da dívida sem dar liquidez quase que imediata aos papéis. O investidor compra um título com vencimento daqui a 50 anos, mas o que ele quer é realizar o seu target de ganho em poucos dias ou semanas e revender o papel a quem tenha outro target. O mundo vive sob o império do ganho financeiro de curto prazo, nada mais.

Então, o Tesouro acaba se vendo numa armadilha. Se não der liquidez ao papel que pensava ter vendido por longo prazo, nunca mais consegue vender papéis àquele credor ou a seus associados. Estreita com isso sua margem de manobra para rolagem da sua dívida.

O desdobramento dessa saia-justa em que o Tesouro se meteu - sem necessidade - é agora uma outra idéia arriscada: voltar a lançar LFTs, papéis que têm liquidez imediata, mas atrelados à Selic. Em outras palavras, sua atratividade depende de a Selic permanecer alta - o que contraria a intenção de ir reduzindo os juros.

*Marco Antonio Rocha é jornalista. E-mail: marocha@estado.com.br