Título: O triângulo de Lula
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/05/2006, Notas e Informações, p. A3

Só uma decisão política poderá desemperrar as negociações globais de comércio, voltou a dizer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desta vez em seu programa semanal de rádio. Segundo ele, "a coisa está mal parada", mas ainda é possível definir até julho as bases de um acordo. Para isso, os atores de maior peso - Estados Unidos, União Européia e Grupo dos 20 - deverão comprometer-se politicamente com o sucesso da Rodada Doha. Essa decisão caberá aos chefes de governo, insistiu o presidente, porque os técnicos e diplomatas não têm conseguido romper os impasses.

O último prazo fixado pelos principais negociadores terminou em abril. Uma nova tentativa será feita no final de junho. Cerca de 40 ministros buscarão, em Genebra, um entendimento sobre cortes de tarifas e subsídios agrícolas e industriais. Se a reunião der certo, será possível, de novo, apostar num acordo final sobre todos os tópicos da rodada ainda este ano.

O presidente Lula está certo pelo menos quanto a um ponto. Sem acordo nos próximos meses, poderá haver um retrocesso muito grande. O Executivo americano só tem mandato para negociar acordos comerciais até o meio do próximo ano. Esgotado esse prazo, o presidente George W. Bush terá de negociar com o Congresso nova autorização para negociar compromissos passíveis de aprovação ou rejeição, mas não de emenda pelos parlamentares. Sem esse mandato, qualquer negociação se torna muito arriscada para todos os participantes.

O esgotamento dessa autorização estabelece, portanto, um prazo crucial para a Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). Já se passaram quatro anos e meio desde o lançamento das conversações, na capital do Catar. Não se pode prever quanto tempo ainda será necessário para a conclusão do trabalho, se for preciso ir além do meio do próximo ano.

O fracasso da rodada estimulará mais acordos bilaterais e inter-regionais, já muito numerosos. Isso tornará mais complexa e mais confusa a regulação dos negócios internacionais. Além disso, a Organização Mundial do Comércio poderá ficar politicamente enfraquecida. Isso também contribuirá para a desordem e para a expansão do protecionismo.

Os maiores perdedores serão os pobres, segundo o presidente Lula. Mas ele deveria incluir o Brasil entre os mais prejudicados, pois o País não tem acordo de livre comércio com os países mais desenvolvidos. Ficou para trás, enquanto muitos de seus parceiros latino-americanos cuidaram de negociar pactos comerciais com os Estados Unidos e a União Européia.

A solução política, disse o presidente, será "um triângulo de compromisso". A União Européia deverá facilitar o acesso dos países em desenvolvimento ao seu mercado agrícola. Os Estados Unidos terão de reduzir seus subsídios à agricultura, incluídas as subvenções indiretas à exportação. O Brasil e outros emergentes precisarão abrir mais seus mercados à importação de bens industriais e às transações de serviços. O governo brasileiro, disse o presidente, está disposto a conversar com os parceiros do G-20 para definir aquelas concessões. O grupo é formado por emergentes e pobres com interesses comuns, ou parcialmente comuns, na reforma do comércio agrícola.

Mas essa conversa também não será fácil. Como lembrou nesta segunda-feira o presidente da Comissão Européia, José Manuel Durão Barroso, os países do Mercosul não conseguem sequer entender-se uns com os outros. As divergências comerciais entre Brasil e Argentina são conhecidas. Uruguai e Paraguai, insatisfeitos com a situação do bloco, ameaçam deixar a união aduaneira e buscar acordos comerciais com os Estados Unidos.

Além disso, os interesses dos emergentes não coincidem com as ambições dos países pobres e, portanto, o Brasil não tem como negociar compromissos aceitáveis pelos africanos, como lembrou na semana passada, em Genebra, o ministro do Comércio do Egito, Rachid Mohamed Rachid.

O quadro geral é muito mais complexo do que parece admitir o presidente brasileiro. Um "triângulo de compromisso" poderá ser um avanço, mas não haverá solução completa sem atenção especial ao numeroso grupo dos pobres. A dicotomia Norte-Sul não esgota a complicação do mundo real.