Título: Abafa-Sanguessuga
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2006, Notase Informações, p. A3

Em lugar de agradecer e prestigiar, tanto a Polícia Federal (PF) - que por meio da chamada Operação Sanguessuga descobriu um dos mais abrangentes e vergonhosos roubos de dinheiro público, na Câmara dos Deputados, por meio da compra superfaturada de ambulâncias com recursos do Orçamento da União - como o Ministério Público, que acompanha a operação, e a própria Justiça de Mato Grosso, que a tem respaldado, os líderes do PTB, do PL, do PSB, do PMDB, sob o comando do líder do PT, deputado Arlindo Chinaglia, resolveram "inverter" o processo e cobrar as instituições que investigam. Em discurso aplaudido no plenário, Chinaglia sugeriu que os representantes destas sejam chamados à Câmara para explicar o vazamento dos nomes envolvidos para a imprensa e identificar os deputados sob investigação. Por sua vez, o corregedor da Câmara dos Deputados, Ciro Nogueira (PP-Piauí) - que deveria ser o maior interessado na apuração da megabandalheira e punição dos responsáveis, visto que lhe cabe zelar pela boa imagem da Casa -, acusou a Polícia Federal de ter agido de maneira ilegal e chamou de irresponsável o juiz de Mato Grosso, que trata do processo.

Inicialmente, da relação de 62 parlamentares citados pela Polícia Federal, como envolvidos no esquema de compra superfaturada de ambulâncias da empresa Planan, de Mato Grosso, a Corregedoria limitou a apuração interna a apenas 16 deputados - alegando que apenas sobre estes havia indícios mais consistentes de envolvimento. Depois, em segunda lista a PF ampliou o número de suspeitos para 81 parlamentares - número, aliás, quase coincidente com o dos 83 identificados pela ex-funcionária do Ministério da Saúde Maria da Penha Lino, que declarara à PF a existência de 170 parlamentares participantes do esquema. Por fim, como que imbuídos de um sentimento de justa indignação, ante a aleivosa tentativa de desprestigiar a nobre instituição do Poder Legislativo nacional - da parte de quem? PF? MP? Justiça? -, resolveu-se devolver à Polícia Federal a lista dos 81 suspeitos.

Disse o corregedor Ciro Nogueira que a PF, independentemente de autorização do Supremo Tribunal Federal, está investigando os parlamentares, o que contraria a lei. Disse mais, que o juiz de Mato Grosso não teve o cuidado de pedir à PF que separasse os deputados contra os quais há indícios de envolvimento dos que apenas foram citados por terem apresentado emendas ao Orçamento - razão pela qual esse magistrado seria "irresponsável". Ocorre que a PF não iniciou a investigação desses parlamentares sem autorização. A eles chegou depois de investigar outras pessoas (inclusive assessores de parlamentares) com graves indícios de participação no esquema, pelo que efetuou a prisão de mais de quatro dezenas delas. Por outro lado, não cabia ao juiz e nem mesmo à Polícia Federal fazer triagem de suspeitos, se para chegar a isso necessitava realizar amplas investigações.

Uma indagação se torna essencial em toda essa escabrosa história, que fere fundo a imagem do Legislativo federal: não será do maior interesse dos legítimos representantes do povo - já que é aos representados que devem explicações - que se investigue, à exaustão, episódio tão deprimente de crime continuado, de assalto ao dinheiro público, em um campo particularmente sensível da administração pública, como o da Saúde, de cujos serviços necessitam mais, justamente, as camadas menos favorecidas da população brasileira? É verdade que pode ter havido por parte de alguns - como argumentou o líder do PFL, deputado Rodrigo Maia - a intenção de vazar listas misturando supostos envolvidos com outros contra os quais não há indícios, como estratégia para beneficiar os culpados. Mas a própria Corregedoria da Câmara dos Deputados, que para suas investigações interna corporis não precisa de autorização do STF, não teria condições de realizar profundas investigações para separar o joio do trigo, aproveitando (e não "devolvendo") o trabalho já feito pela Polícia Federal?

Por tudo isso a lamentável conclusão a que se chega é uma só: a Câmara dos Deputados está desenvolvendo uma operação "Abafa-Sanguessuga" que pode se tornar mais eficiente, em termos de acobertamento, do que a Operação Sanguessuga da PF pode ser, em termos de investigação.