Título: Reaprender as lições de Rio Branco
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2006, Notas e Informações, p. A3

Em 1902, quando o governo brasileiro comunicou que denunciaria o Tratado de Ayacucho, que dera o Acre à Bolívia - que por sua vez passara o território ao Bolivian Syndicate, uma empresa norte-americana que recebeu poderes de soberania, inclusive os de criar e arrecadar impostos e manter forças armadas -, a resposta do governo boliviano foi taxativa. "Do sul, um exército marchará para o Acre", esbravejou o presidente de turno, general José Manuel Pando. E o barão do Rio Branco, à frente do Itamaraty, não deixou por menos: "Do norte, um exército marchará para o Acre. Mas, até que chegue, há tempo para negociar." Dito e feito. Para o território disputado seguiram tropas do exército e belonaves fluviais. Em poucos meses o Tratado de Petrópolis, pelo qual a Bolívia vendeu o Acre ao Brasil, que também pagou uma polpuda indenização do Bolivian Syndicate, estava assinado - e com isso pacificou-se a maior fronteira terrestre do Brasil.

O Itamaraty, nos dias de hoje, parece esquecido das lições do barão. Ele negociava, negociava exaustivamente. Também amparava suas posições com fundamentos jurídicos sólidos. Mas jamais se esquecia de que o exercício da diplomacia é, também, exercício de poder. E foi por isso que, para que se pudesse realizar a obra de consolidação das fronteiras nacionais, o Brasil modernizou seu Exército e adquiriu uma das maiores marinhas de guerra do mundo, na época.

Na atual crise com a Bolívia, não há que se pensar em recurso às armas - exceção feita ao ministro dos Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada, que, em depoimento no Senado boliviano, insinuou que o Brasil poderia intervir militarmente naquele país. Mas o ministro Soliz Rada é um caso à parte. É dele a afirmação, também feita no Senado, de que a Petrobrás é controlada por empresas transnacionais na razão de 60% para 40% das ações. E isso não é ignorância - é má-fé. Faz parte da deliberada apresentação do Brasil e das empresas brasileiras como exploradores imperialistas das riquezas bolivianas, feita para mobilizar a nação em torno dos candidatos de Evo Morales à Assembléia Constituinte, que será eleita em breve.

O Itamaraty, se conseguir reaprender as lições de Rio Branco, poderá usar instrumentos menos violentos, mas igualmente eficazes, para levar o governo boliviano a agir com civilizado respeito em relação aos legítimos interesses brasileiros. No limite, o fechamento do gasoduto causaria prejuízos - nenhum insanável - às empresas brasileiras, mas estrangularia a economia boliviana. A Bolívia precisa do voto brasileiro nos organismos multilaterais de crédito e pode tanto dificultar a contratação de novos créditos como tornar praticamente impossível o cancelamento de dívidas passadas, como quer Morales. E não seria complicado esfriar as relações diplomáticas e isolar a Bolívia no Mercosul, deixando-a tirar proveito da opção que fez pelo eixo Caracas-Havana. Finalmente, o Brasil poderia coordenar a reação internacional contra a irresponsabilidade de Evo Morales e Hugo Chávez, já salientada pelos primeiros-ministros da Espanha e da Inglaterra.

Mas as reações do chanceler Celso Amorim às agressões perpetradas por Morales, logo que chegou em Viena, são desanimadoras. Primeiro ele se disse chocado. Depois, que estava perplexo. E só depois da insistência de repórteres manifestou sua "indignação". O fato indiscutível é que, primeiro, Hugo Chávez e, depois, Evo Morales, perderam o respeito por Lula - e o humilharam perante o mundo, como registra a revista The Economist desta semana. O presidente da Bolívia disse ontem que respeita Lula e culpou a imprensa pelas referências desairosas à Petrobrás e ao Brasil. E isso bastou para que Lula aceitasse partilhar o café-da-manhã, hoje, com quem insultou o Brasil, ontem.

Como observou a revista britânica, Chávez e Morales tratam o presidente Lula como um "coadjuvante irrelevante" no cenário sul-americano porque a política externa brasileira é um desastre baseado na presunção de que interesses comuns aglutinariam a região e o Brasil teria condições de exercer uma liderança explícita. Essa política afastou do Brasil os países moderados e abriu caminho para a aventura de Chávez e Morales. O Itamaraty não será capaz de resguardar os interesses e a dignidade nacionais enquanto perdurar essa insana política. Para mudá-la, seus principais ideólogos e mentores - o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães e o assessor Marco Aurélio Garcia - precisam ser demitidos.