Título: De tragédias e vergonhas
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Em quem acreditar? No Silvio Pereira, quando garante que o PT, do qual foi secretário, e o publicitário Marcos Valério pretendiam arrecadar R$ 1 bilhão em negociatas; ou no Silvinho que, na CPI dos Bingos, diz não saber "mais onde está a verdade"? No presidente Luiz Inácio, que dá atestado de bom comportamento ao companheiro Evo Morales por conta do episódio de nacionalização do gás boliviano, que humilhou o Brasil; ou no ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que critica o presidente da Bolívia pela atitude "adolescente" de pôr tropas do Exército nas portas das refinarias da Petrobrás? Vivemos ou não no "país do faz-de-conta", onde mentiras e corrupção estão a serviço de um grupo que pretende "alcançar o poder de forma ilimitada e duradoura", como denuncia o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Marco Aurélio Mello? É crível ou fantasiosa a denúncia de que 170 (33%) dos 513 deputados federais recebiam propina de uma empresa em troca de emendas ao orçamento da União? Dá para acreditar que, após a mais grave denúncia da contemporaneidade, da lavra do procurador-geral da República, sobre uma "organização criminosa" a serviço do PT, os "quadrilheiros" continuem festejando a impunidade, como se nada houvesse ocorrido?

Naveguemos nas motivações dos coadjuvantes acima. Silvio Pereira sabia das coisas, até porque comandava o processo de nomeação de quadros para a administração federal. Consumido pelo fogo da crise, saiu do PT. Pego no volante de um jipe Land Rover, presente de uma empresa a quem teria feito favores, foi escorraçado por companheiros. Abriu o bico para avisar que a cartucheira está cheia de balas. Acarinhado, tentou livrar-se da convocação da CPI, mas não conseguiu. Cara-de-pau, destrambelhou. Foi a maior exibição de falta de caráter que já se viu nestes tempos de névoa moral. Diz que não disse o que disse. Os homens iniciados na servidão não adquirem dignidade, ensina Aristóteles. Silvinho salvou Lula, afastando bombas e abrindo apenas um saquinho de traques: "Paulo Okamotto era conhecido como Tio Patinhas... tem muitos Marcos Valérios por aí... não me lembro mais o que disse à repórter... não sei mais onde está a verdade."

Passemos ao segundo ator. Se dom Luiz I brigasse com Evo Morales, queimaria a chance, com que ainda sonha, de liderar a banda esquerda do continente. Teve de engolir o sapo indígena. E montar no "cavalo" que Morales arranjou e que foi, segundo ele, dado pelo Brasil para comprar da Bolívia, em 1903, o território do Acre. O bigode do Barão do Rio Branco deve estar bolando de rir. Mas Lula não se toca. Vale-se da receita que sempre usa para curar feridas, ou seja, afagar o coração das massas. Prometeu que o preço do gás não subirá. Quanta mistificação! Lula proclama-se defensor dos pobres contra a ameaça estrangeira e desfila como herói de uma batalha perdida. Para amaciar o centro da sociedade escala Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, para ensaiar um arremedo de carão nos presidentes da Bolívia e da Venezuela. Chávez retruca dizendo que os "amigos brasileiros" são ignorantes. Pior fica Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobrás: defende a legitimidade dos contratos, ensaia palavras duras, mas é desautorizado pelo comandante-em-chefe. E a Bolívia ameaça não indenizar a Petrobrás, que chama de "contrabandista".

Meditemos, agora, sobre a expressão do magistrado que se respeita como a mais imparcial. O ministro Marco Aurélio Mello, ao dizer que o Brasil é o "país do faz-de-conta", resgata a linha traçada pelo procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza. Ambos denunciaram as máfias que solapam as bases do Estado brasileiro, aliás, responsáveis pela queda do País em 20 pontos no ranking da competitividade global em 2005. Tanto a quadrilha denunciada pelo procurador como os implicados no saque coletivo desvendado pela Polícia Federal e confirmado por uma ex-assessora do Ministério da Saúde deverão brincar muitos carnavais antes de entrarem em cana. Se houver, claro, tal possibilidade. Quem acredita que as investigações resultarão em punição? O que impressiona, no último caso, é o assalto aberto aos cofres públicos e detalhes como "propina na mala, na meia e na cueca". Macunaíma, o herói sem caráter, proclamava que "muita saúva e pouca saúde/as pragas do Brasil são". Continua atual. Ironia: a sanguessuga tomou o lugar da saúva.

A velha interrogação é inevitável: que país é este? Somos uma nação-baleia, como são chamados os países de amplas extensões territoriais e imensos potenciais de riqueza. Exibimos o tamanho de baleia até no tamanho das vergonhas, expostas na estatística de coisas ruins: 28 milhões de jovens de até 17 anos vivendo na miséria; 38% de brasileiros analfabetos funcionais, pessoas que não conseguem entender o que lêem; 3º colocado no ranking do homicídio juvenil, com uma taxa de óbito de 48,5 pessoas por grupo de 100 mil jovens; 1º colocado no ranking de óbitos por arma de fogo, oito pontos acima do segundo colocado, os Estados Unidos; 7 milhões de famílias sem moradia; um terço das residências sem redes de esgoto; 35% dos brasileiros são pobres. E, para vomitar grandeza em outros campos, somos também o país da lerdeza, da burocracia e dos impostos. Uma causa de aposentados e pensionistas da Rede Ferroviária Federal, em Minas Gerais, chega ao final depois de 39 anos. Do grupo há apenas cinco pessoas vivas. E o que dizer dos 76 impostos, taxas e contribuições no País que pairam sobre empresas e pessoas?

Mas as nossas vergonhas não causam estupefação. A mediocridade ocupa o lugar da grandeza. A vilania é geral. E assim o lamento do velho Rui Barbosa se transforma em canto que cai no esquecimento: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."