Título: 'Um soco forte no lugar certo'
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Economia & Negócios, p. B5

Nacionalização reforçou popularidade de Evo Morales, que pretende eleger 70% da Assembléia Constituinte

Na sexta-feira passada, caminhando por seu escritório em Santa Cruz de La Sierra, um alto executivo da YPFB, a estatal de gás boliviano, tentava explicar o decreto de nacionalização assinado dias antes pelo presidente Evo Morales. Depois de repetir frases conhecidas sobre soberania nacional e direitos do povo, concluiu que era mais adequado usar uma imagem - e deu um soco no ar. "Foi isso", afirmou. "Para nós bolivianos, foi um soco forte, no lugar certo, na hora certa."

O golpe de Evo Morales foi manchete mundial e vitaminou a popularidade do presidente, que sonha em eleger 70% das cadeiras da Assembléia Constituinte, em julho. Do ponto de vista do governo boliviano, a contabilidade do gás funciona assim: cada aumento de US$ 1 no preço de 1.000 pés cúbicos (o equivalente a 30m3) vai elevar as receitas do país em US$ 360 milhões - um reforço respeitável num país onde mais de 60% da população vive a abaixo da linha de pobreza, cuja miséria é tão notável que recebe tratamento de país-pedinte nos organismos internacionais: suas dívidas são perdoadas, os empréstimos são subsidiados e assina acordos comerciais em condições ultrafavoráveis.

"O que nós queremos não é grande coisa para o Brasil", argumenta Luis Carlos Kinn, conselheiro do governo boliviano nessa matéria, esgrimindo um argumento do tipo "pimenta nos olhos dos outros não arde". "Mas é o dinheiro que fará a diferença entre um bom e um mau governo na Bolívia."

Longa e profunda, a estagnação econômica boliviana desmoralizou a maioria dos políticos e chegou à vida das pessoas, como observou, em editorial publicado na semana passada, o jornal El Deber. Referindo-se ao que define sem rodeios como "complexo de inferioridade dos bolivianos", o texto lembra que o país se tornou conhecido, no exterior, por "fatos escabrosos, violentos, subversão, desconhecimento da lei, do princípio de autoridade e, o mais vergonhoso, o narcotráfico, que se constituiu uma espécie de carta de apresentação nas alfândegas de todo o planeta".

Insuspeito de simpatias por Evo Morales, El Deber reconhece, depois do decreto do gás, que ele se tornou uma celebridade mundial, para concluir: "Queira Deus que o momento estelar que acabamos de viver se desenvolva em benefício do país e de seu povo, vítima de tão amargas frustrações".

MILITANTE SINDICAL

Pelos padrões econômicos bolivianos, o decreto do gás é, por si mesmo, um programa de governo - com ele, o presidente pretende pôr a estatal YPFB no centro da economia do país, como a maior empresa nacional, o maior caixa e a maior influência. Uma parcela dos papéis de fundos de pensão privados, criados no processo de capitalização de empresas privadas que exploravam petróleo, foi transferida para a YPFB, para lhe garantir musculatura financeira.

Para a maioria dos observadores políticos, Evo Morales chegou a presidência em razão de um gigantesco talento político, mas é um militante sindical com formação frágil e espírito ultra-esquerdista, que se movimenta melhor entre as doutrinas socialistas do século 19 e 20 do que nos desafios e impasses concretos do século 21.

Na semana passada, ele ainda assinou uma medida abolindo um artigo trabalhista que autorizava as empresas a contratar trabalhadores por um período determinado, restaurando a velha estabilidade no emprego. Num país onde o mercado informal é a regra e o desemprego chega a mais de 50% em determinadas regiões, essa medida chega a ser um disparate social, pois só permite a contratação de funcionários quando seus empregos puderem ser mantidos até a aposentadoria. Mesmo assim, o vice-presidente Alvaro Garcia Lineira justificou a decisão pelo aspecto ideológico, pois confirmava a ação do governo para "colocar três cruzes no modelo neoliberal que vigorava em nosso país".

"O ponto de partida para compreender o comportamento de Evo é sua firmeza", diz Nicolas Rigueira, coordenador do Departamento Jurídico da Universidade Autônoma Gabriel Moreno, de Santa Cruz, referindo-se à cultura dos índios aimarás, base de determinados valores do presidente. "Os aimarás têm três mandamentos: 'Não mentir, não se acovardar, não roubar'." Riguera está convencido que essas razões morais também ajudaram Evo Morales a nacionalizar o gás apenas cem dias depois de assumir o governo. "Ele não precisava ter feito um decreto agora, poderia ter negociado antes. Não precisava ter chamado tropas. E poderia ter sido mais prudente, considerando que vivemos uma situação internacional de crise entre Estados Unidos e Irã por causa do petróleo. Mas não queria ser visto nem como mentiroso, nem como medroso nem como corrupto."

CHE GUEVARA

Há semelhanças e interesses comuns entre Evo Morales e seu aliado Hugo Chávez, da Venezuela, mas também há diferenças. Chávez pode até ajudar a Bolívia com pessoal treinado, tecnologia e muita encenação, mas não tem o que o país precisa de verdade - um mercado grande e rico, como o do Brasil, para comprar o gás boliviano. Pelo petróleo, Chávez tem acesso ao mercado mundial e recolhe benefícios daí. O gás de Evo Morales só pode ser vendido no mercado regional sul-americano, para clientes que têm o monopólio da compra e têm cartas poderosas na manga.

Evo chegou a morar numa casa onde havia uma imagem de Che Guevara na sala de visitas e cultiva uma afeição profunda pela ditadura cubana de Fidel Castro. Mantém centenas de médicos cubanos no país, com salários criticados pelos profissionais locais, e aderiu sem restrições à aliança de livre comércio com Fidel e Chávez, onde é difícil encontrar benefícios concretos. "Para nós, Cuba é um aliado sem serventia", esbraveja Gabriel Dabdoud, presidente da Câmara de Indústria,Comércio, Serviços e Turismo de Santa Cruz (Cainco). "Cuba não tem dinheiro para nada."

O soco imaginário do presidente boliviano alimentará seu futuro imediato, nas eleições para a Assembléia Constituinte. Apoiado no eleitorado dos aflitos e carentes, enxerga ali a chance de fazer maioria absoluta, num projeto em que pretende "refundar o país". O calendário da nacionalização tem a conveniência de permitir acertos com as empresas de petróleo também. Depois da contagem dos votos para a Constituinte, restarão ainda três meses de prazo para negociar e fazer concessões sem o risco de enfrentar prejuízos eleitorais.

"O receio é que ele pretenda sufocar a oposição", afirma Daniel Castro, do Comitê Pró Santa Cruz, entidade fundada em 1950, que reúne empresários, associações de moradores e sindicatos do departamento (estado) com os melhores indicadores sociais do país, onde o presidente foi derrotado nas eleições presidenciais.