Título: De índio plantador de coca a presidente
Autor: Jochen-Martin Gutsch
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Economia & Negócios, p. B4

Evo Morales diz que nunca pensou que se tornaria tão proeminente

A história que Alex Contreras gosta de contar pode ser verdade ou apenas uma boa história. É uma história de agricultores, solidariedade e nascimento de uma criança - um pouco como a história de Jesus. Verdade ou não, seria um bom começo para uma vida de herói.

Era um dia de outubro de 1959 e a agricultora María Aymar estava prestes a dar à luz. A parteira, o marido de María, Dionisio Morales Choque, e algumas pessoas do povoado estavam sentadas com ela há horas no casebre de madeira com telhado de sapé. Quando María começou a sangrar, tudo que restava era esperar e rezar. O panorama para a mãe e para a criança não era bom. De repente, ela manifestou um desejo incontrolável por pão quente, saído do forno. Um dos aldeões foi enviado então atrás do pão, e não o encontrando no povoado, Isallavi, seguiu pelas terras planas e poeirentas do Altiplano, um planalto a 4 mil metros de altitude nos Andes bolivianos, até uma aldeia próxima. Ali ele encontrou pão fresco e voltou para casa, receando encontrar algum morto, a criança ou a mãe. Mas não. Chegou a tempo e, quando entregou o pão à mulher, ela começou a parti-lo e distribuí-lo a todas as pessoas presentes. Precisamente neste momento as contrações de María cessaram e ela deu à luz um bebê saudável. Seu nome é Juan Evo Morales Aymar. Esta é a história, ou, talvez, a lenda. Algum dia ela fará parte da biografia de Evo Morales, o novo presidente da Bolívia.

A biografia está quase pronta. Alex Contreras trabalha nela nos últimos oito anos. Ele não é apenas o biógrafo de Evo; é também o assessor de imprensa do presidente, com um grande escritório na capital boliviana, La Paz, e muito pouco tempo. Ultimamente ele anda submerso em pedidos: documentaristas, jornalistas europeus, equipes de televisão da Califórnia - todo mundo quer conversar com Evo Morales. Evo não é apenas presidente; é também um índio sul-americano, um apaixonado pelo líder revolucionário Che Guevara, um homem que se refere a si mesmo como o maior pesadelo dos americanos. Um homem que alguns, nos Estados Unidos, consideram um mero traficante de drogas e terrorista.

Poucas vezes, duas na verdade, a Bolívia ganhou as manchetes mundiais em sua história recente - em 1967, quando Che Guevara foi morto nos contrafortes dos Andes e em 1997 quando seus ossos foram encontrados.

Normalmente, ninguém está particularmente interessado em um presidente boliviano. Numa escala global, eles em geral são tão pouco conhecidos quanto presidentes búlgaros ou jogadores de futebol albaneses. E geralmente não ficam muito tempo no cargo, porque são derrubados por algum golpe ou porque renunciam diante de uma das freqüentes greves gerais bolivianas, que paralisam o país. Evo é o quinto presidente em 5 anos.

Na Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, onde cerca de 70% das pessoas são índias, Evo conquistou o povo com suas aparições públicas. Seu comportamento, suas roupas, seu discurso reforçam a imagem de um novo presidente boliviano que recusa se submeter à cultura do Ocidente porque não é a sua cultura.

O 'EVISMO'

Existe um sentimento de que toda a América do Sul está em polvorosa e guinando para a esquerda. A América do Sul sempre teve os melhores heróis - um bonito como o Che, um amável como Salvador Allende e um cavalgando um corcel negro como o ex-presidente nicaragüense Daniel Ortega. Eles incorporavam o velho sonho de algo novo, algo mais justo, uma marca branda de socialismo num país exuberante, liderado por gente calma e bem-intencionada.

Se a Ásia é conhecida pelos milagres econômicos, as revoluções fazem a fama da América Latina. E esta parece ser precisamente a direção escolhida por Evo Morales. Depois de eleito, ele visitou o presidente cubano Fidel Castro, a quem chamou de amigo, e o venezuelano Hugo Chávez, a quem chamou de aliado "na luta contra o neoliberalismo e o imperialismo". Falou da luta contra "o império" - os EUA - e de sua convicção de que a cultura do povo indígena do país é a cultura da vida e a cultura do imperialismo, a da morte.

Alex Contreras diz que o "evismo" está começando a se espalhar pela América do Sul. Mas o que é evismo? Um movimento político, uma nova teoria social: "Não estamos muito certos ainda", diz ele, "mas estamos estudando o fenômeno".

Evo Morales é filho de agricultores. Quatro de seus irmãos morreram antes dos dois anos de idade, mas ele cursou 12 anos de escola, foi pastor de lhamas, tocador de trompete, maratonista, pedreiro, treinador de futebol e agricultor de coca. Ele acredita em Pachamama, ou Mãe Terra, e nos quatro mandamentos dos índios aimaras: Não roubarás. Não mentirás. Não serás preguiçoso. Não serás submisso.

Talvez sua crença nesses mandamentos baste para fazer dele o candidato ideal para o trabalho de revolucionário nos tempos frios da globalização.

LÍDER

A antiga casa de Evo fica nos arredores da aldeia de San Francisco nas planícies quentes da região de Chapare, centro de cultivo de coca. Ele se mudou para lá no início dos anos 80, querendo se tornar plantador de coca. A coca é boa para iniciantes, por ser fácil de cultivar. É uma planta robusta que exige poucos cuidados. As folhas são colhidas três vezes por ano - ela é praticamente sagrada na Bolívia, onde todos mascam as folhas bebem seu chá.

Morales não estava especialmente interessado em política naquela época. Mas era um razoável atacante de futebol e se tornou encarregado esportivo na aldeia, seu primeiro cargo público. Mais tarde, quando soldados vieram a Chapare para erradicar plantas de coca, Evo se tornou o líder de um movimento. Os soldados geralmente chegavam pela manhã e obrigavam os agricultores a lhes mostrarem os campos. Os soldados arrancavam os pés de coca e os picavam com facões.

O programa de erradicação era parte da Lei 1.008, sancionada no final dos anos 80. A Bolívia havia se tornado o maior produtor de coca da América Latina e os EUA queriam dar um basta na produção boliviana.

Eles prometeram ajuda estrangeira ao governo se os bolivianos aceitassem a erradicação das plantações de coca e enviaram dinheiro e pessoal de treinamento militar para uma guerra total à coca. A máquina da erradicação estava montada, mas tudo que ela trouxe para o país foi pobreza e violência, agricultores e soldados mortos.

Este foi o começo da ascensão de Evo ao poder. Ele se tornou chefe do sindicato dos plantadores de coca (os cocaleros) e organizou um movimento de protesto e resistência. Foi preso muitas vezes e proibido de falar em público. Numa ocasião, a polícia o espancou até dá-lo como morto e atirou seu corpo desmaiado na selva. Evo se tornou então um inimigo do Estado - e um mártir. Foi nessa época que moldou sua visão sobre os EUA e sobre os "gringos" que nunca traziam nada de bom para o país. No fim, a batalha da coca resultou num ex-cocalero guindado à posição de presidente da Bolívia.

Evo diz que nunca imaginou que se tornaria tão proeminente e que se sente mais um chefe de oposição do que um presidente. Ele afirma ser completamente natural, um verdadeiro nativo. Diz também que não pode dizer se é socialista, e que "somente o povo pode decidir isso". Che queria uma sociedade com princípios; Evo diz que deseja a mesma coisa.

Há momentos em que ele passa a sensação de que não está escutando, ao menos neste palácio ou nesta sala onde ele me concede a entrevista acertada por Contreras. Ali está ele, um bom e corajoso agricultor que, de algum modo, se vê envolvido na luta de classes. Mas não há como voltar atrás, porque os bolivianos precisam dele. E eles têm altas esperanças.

Alex Contreras entra na sala e acena para o presidente. Uma equipe de televisão italiana está esperando. Mas isso não importa, porque realmente não há mais perguntas a serem feitas. Evo Morales se levanta, um homem simples trajando um casaco de couro marrom e tênis. Talvez alguém se lembre dele algum dia, afinal. Na verdade, há apenas duas opções para os heróis. Eles caem ou se tornam imortais.