Título: Um chanceler que não formula a política externa
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Economia & Negócios, p. B3

Amorim não segue a tradição dos antecessores e exerce o papel de porta-voz informal do Itamaray

Foram-se os tempos em que o País tinha no comando do Ministério das Relações Exteriores o real formulador e condutor da política externa do Brasil, como nos períodos do Barão do Rio Branco, Oswaldo Aranha, Azeredo da Silveira, Saraiva Guerreiro e de tantos outros.

Entre outras fragilidades da diplomacia, a crise do gás revelou que o chanceler Celso Amorim não tem seguido a tradição de seus antecessores. Espremido acima pelo projeto de formulação de política externa do assessor especial do Palácio do Planalto, Marco Aurélio Garcia, e abaixo, pela condução ideológica do secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, Amorim funcionou menos como ministro das Relações Exteriores e mais como uma espécie de porta-voz informal do Itamaraty.

"A política externa está desorganizada, ela não pode ter três chefes", observou o embaixador José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro de Estudos Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

"Celso Amorim está na defensiva, nesse episódio ele ficou em segundo plano, mas é cedo para dizer que ele está esvaziado", afirmou o embaixador Rubens Barbosa, ressalvando que, quando se trata da Europa e da Organização Mundial do Comércio (OMC), o chanceler é ainda o protagonista da política externa nacional.

A favor de Amorim pode-se dizer que ele tem se dedicado ao exercício de explicar a crise, defendendo com firmeza a posição brasileira mesmo quando questionável, como ocorreu na resposta do País à Bolívia.

O problema é que essa tarefa poderia ter ficado a cargo do embaixador Ricardo Neiva Tavares, que pelo menos tem a função de porta-voz e pouco fala publicamente em nome do ministério. "Em outros tempos, caberia ao porta-voz esse tipo de defesa, ficando para o chanceler a convocação do representante boliviano no Brasil para um pito exemplar seguido de uma nota de repúdio", lembra um diplomata brasileiro, preferindo não se identificar.

Para os mais experientes, a divisão de poderes no coração da política externa não só reduz o espaço de ação do titular do ministério, como acaba permitindo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reconhecidamente não é um especialista no assunto, acabe discutindo um tema estritamente bilateral, o da crise do gás entre Brasil e Bolívia, em um encontro multilateral, do qual fizeram parte o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, e até o da Venezuela, Hugo Chávez, que espera ser o único ganhador de todo o conflito.

"Não dá para conduzir esse assunto pelas afinidades ideológicas do Marco Aurélio Garcia e do Samuel Pinheiro. Cabe ao chanceler parar de incensar o presidente da República, como se ele fosse o nosso guia, e conceder a ele o benefício de uma avaliação mais objetiva dos fatos", advertiu Celso Lafer, que comandou o Itamaraty por duas vezes.

Ele lembra que a diplomacia, conduzida pela tríade que comanda a política externa, faz barulho, mas exporta fragilidade. "No século 19, o Conselho de Estado do Império definiu a atuação do Itamaraty da seguinte forma: a diplomacia deve ser inteligente e sem vaidade, franca sem indiscrição e enérgica sem arrogância. É o que falta ao Amorim."

Para o ex-chanceler, a ausência desses atributos criou uma política externa de sinais trocados. "A tradição do Itamaraty sempre foi de firmeza sem estridência, agora é estridente porém sem firmeza."

Talvez por isso a Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, tenha resolvido falar grosso.