Título: Um pito em Chávez, sem testemunha
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Economia & Negócios, p. B3

Governo brasileiro tem consciência das pretensões de liderança do presidente venezuelano no continente

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, levou um pito de um de seus maiores aliados, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela sua interferência no episódio da nacionalização do setor de gás na Bolívia.

A repreensão foi considerada merecida e necessária pelos analistas e diplomatas que acompanharam o episódio. Mas se deu a portas fechadas, e com poucas testemunhas, durante o encontro de quinta-feira entre Lula, Chávez e os presidentes Evo Morales, da Bolívia, e Néstor Kirchner, da Argentina, em Puerto Iguazú.

Da reunião, o quarteto saiu para a frente das câmeras como velhos companheiros. Salvo os momentos de irritação, que Lula conteve durante a entrevista, o que ficou registrado foi a imagem de inércia do governo brasileiro diante da crise.

Nos bastidores, porém, um Lula nervoso cobrou de Chávez e de Evo coerência com relação à posição de solidariedade prestada pelo seu governo à Bolívia e Venezuela e apontou os riscos de sua iniciativa para o processo de integração sul-americano. "Todos os recados foram dados", garantiu o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao relatar o encontro a seus assessores mais próximos.

A necessidade de cobrar de Chávez uma explicação foi uma das razões que levou Lula a pedir a sua participação no encontro, que deveria tratar o problema causado pela decisão de Evo ao Brasil e à Argentina, em menor grau. O puxão de orelhas não seria público, mas teria os personagens necessários por testemunhas.

Na avaliação do embaixador Rubens Barbosa, hoje presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), outra razão do convite foi diluir o natural choque da dupla Brasil-Argentina contra a Bolívia. A nota emitida ao final do encontro, na opinião do ex-diplomata, somente serviu para justificar a presença de Chávez, cuja ascendência sobre Evo é indiscutível.

No governo brasileiro, não há dúvidas de que Chávez instigou uma decisão mais radical do presidente boliviano em relação à nacionalização e ocupação das refinarias da Petrobrás e das outras multinacionais por militares bolivianos no momento do anúncio da medida por Evo, em 1º de maio. Também se tornou mais claro para o Palácio do Planalto o interesse do presidente venezuelano em promover uma eventual ocupação do espaço da Petrobrás na Bolívia pela Petróleos de Venezuela SA (PDVSA).

Fontes do Itamaraty justificaram o convite a Chávez como uma tática para conter a tendência de Evo Morales de "cair definitivamente nos braços" do venezuelano. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro evitou um arriscado isolamento de Chávez, fator que traria ainda mais problemas para a região, e manteve a sua capacidade de "toureá-lo".

"Chávez faz um jogo duplo com o Brasil. É um ciscador, com a atuação externa alimentada pelos petrodólares", afirmou um diplomata próximo a Amorim. "Ele mostra que admira o Brasil e o presidente Lula, mas quer se tornar mais influente na América do Sul. Não somos bobos."

QUIZUMBA

De fato, o governo Lula coleciona rusgas e sustos com Chávez, contornados por meio do contato direto e franco. No início de 2003, coube ao presidente brasileiro convencer o venezuelano, na Granja do Torto, em Brasília, de que os Estados Unidos teriam obrigatoriamente de participar do Grupo de Amigos da Venezuela. No ano passado, Chávez quase pôs a perder a formalização da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), durante reunião dos presidentes da região convocada por Lula. O presidente brasileiro o demoveu de sua decisão de não assinar o documento final.

Em dezembro passado, em Hong Kong, o negociador venezuelano na Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) negou-se a assinar o texto final, com o objetivo de impedir o necessário consenso. Alertado por Amorim, Lula imediatamente falou com Chávez, orientando o representante venezuelano a favorecer o consenso. "Se o Chávez for isolado, ele cria uma quizumba", afirmou um diplomata.

Os atropelos de Chávez nesse episódio deixaram clara a sua pretensão de liderança no espaço sul-americano, mas igualmente colocaram o foco sobre os perigos de suas iniciativas intempestivas sobre projetos maiores, como o da integração sul-americana. Para o ex-chanceler Celso Lafer, o venezuelano tornou-se um "indutor de tensões" na região, que agudizam e desagregam a integração sul-americana, e colocou em xeque a posição de liderança "mais construtiva" do Brasil.

Embora considere que não há possibilidade de a Venezuela sobrepor-se à condição de liderança regional do Brasil, dadas as dimensões econômicas menores do país, Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, considera a pretensão de Chávez uma realidade. "Chávez quase pôs a integração sul-americana a perder. Faria um bem para a América do Sul se se contivesse", afirmou.