Título: Legalmente, não há casos comprovados
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Vida&, p. A26

Mesmo o exemplo mais citado, o da jararaca, não é certeza de biopirataria

O exemplo mais citado de biopirataria no Brasil - o do veneno da jararaca que virou medicamento contra hipertensão - não é biopirataria coisa nenhuma, segundo o próprio autor brasileiro da pesquisa. "O que aconteceu foi bioestupidez", diz o médico Sérgio Henrique Ferreira, do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP.

Na década de 60, ele descobriu um grupo de moléculas no veneno da jararaca que induz hipotensão (inverso da hipertensão). Os trabalhos foram publicados em revistas científicas e o conhecimento, aproveitado pelo laboratório Squibb para criar o medicamento Captopril, comercializado até hoje no mundo todo. "Ninguém roubou nada do Brasil, isso tem de ficar claríssimo", diz Ferreira. A estupidez, segundo ele, é não saber aproveitar, aqui mesmo, o conhecimento científico produzido no País.

A caracterização da biopirataria é ambígua. Em seu conceito mais estrito, ela se refere especificamente ao uso dos recursos genéticos (genes, proteínas e outras moléculas codificadas pelo DNA) da biodiversidade de um país para o desenvolvimento de produtos, como medicamentos e cosméticos, em outros países. Sem uso dos recursos genéticos, portanto, não haveria crime.

Em uma perspectiva mais ampla, porém, a biopirataria pode ser caracterizada como qualquer uso ou apropriação não autorizada dos recursos biológicos de um país. Isso incluiria o tráfico de animais silvestres e até o registro de marcas com o nome de frutas brasileiras, como ocorreu com o cupuaçu no Japão.

"É importante que o conceito seja amplo, para abranger todas as situações", diz Eduardo Vélez, secretário-executivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente. Por isso, segundo ele, o projeto de lei que está sendo criado para tratar do assunto não trará, ainda, uma definição legal de biopirataria.

O caso do Captopril, segundo Vélez, é anterior à lei nacional de acesso aos recursos genéticos (MP 2.186, de 2001) , o que dificulta sua caracterização como biopirataria. "Legalmente não é, mas, moralmente, é", diz. Mesmo que nada tenha sido roubado do País, segundo ele, o correto seria que parte dos lucros do Captopril fosse dividido com o Brasil, pelo fato do princípio da droga ser originário de uma espécie da fauna brasileira.

Outros exemplos "morais" seriam o perfume Chanel nº 5, que utiliza um extrato do pau-rosa da Amazônia, e várias patentes já registradas sobre usos e produtos derivados de frutas e plantas que ocorrem no País.

Legalmente, porém, não é possível apontar um único caso comprovado de biopirataria da biodiversidade brasileira. Para isso, segundo Vélez, seria necessário provar que o recurso biológico veio mesmo do Brasil (e não de algum outro país) e que a patente foi registrada depois da lei de 2001. "Estamos levantando essas informações", disse.