Título: Protesto hispânico preocupa negros
Autor: Rachel L. Swarns
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Internacional, p. A23

Muitos temem que os problemas dos afro-americanos fiquem em segundo plano ante o movimento dos ilegais

Em manifestações que se espalharam pelos Estados Unidos, muitos imigrantes hispânicos compararam sua luta com a do reverendo Martin Luther King Jr., cantando We Shall Overcome ("Venceremos") e proclamando o surgimento de um novo movimento pró-direitos civis que exige o acesso à cidadania para milhões de imigrantes ilegais.

Grandes defensores dos direitos civis, como o reverendo Jesse Jackson, o deputado democrata John Lewis, Julian Bond e o reverendo Joseph E. Lowery, saudaram os protestos recentes como uma continuação natural do movimento do qual participaram nos anos 60.

No entanto, apesar de uma certa simpatia pelos imigrantes ilegais do país, muitos profissionais, acadêmicos e trabalhadores negros dizem sentir-se cada vez mais incomodados ao ver os hispânicos exibirem sua força política e vestirem o manto de uma seminal luta dos negros por justiça.

Alguns negros ficam indignados com a comparação entre o movimento dos direitos civis e as manifestações dos imigrantes, observando que os manifestantes negros dos anos 60 eram cidadãos dos EUA e haviam suportado séculos de escravidão, estupros, linchamentos e discriminação antes de começar a protestar.

Outros dizem se preocupar com a situação dos trabalhadores negros de baixa qualificação, que às vezes competem com imigrantes por empregos que não exigem experiência. E alguns afirmam temer que as questões ainda não resolvidas do movimento pró-direitos civis fiquem à margem enquanto o país volta a atenção para uma minoria hispânica com nova força e crescente influência política e econômica.

"Tudo isso me fez começar a pensar: 'O que acontecerá com os afro-americanos?'", disse Brendon L. Laster, de 32 anos, um angariador de fundos negro da Universidade Howard. "O que acontecerá com nossa agenda inacabada?"

Laster, professor de meio expediente e ativista democrata, disse ter um amplo círculo de amigos negros, brancos e hispânicos. Ele contou que no início se empolgou com as imagens de imigrantes animados agitando bandeiras. No entanto, quando alguns manifestantes proclamaram um novo movimento pró-direitos civis, Laster ficou incomodado.

Ele afirma que os manifestantes que reivindicam o legado de King e da ativista Rosa Parks estão indo longe demais. E começa a se preocupar com o impacto que o crescente ativismo dos imigrantes terá sobre os americanos negros, muitos dos quais ainda sofrem com a pobreza, altos índices de desemprego e discriminação no local de trabalho.

"O que eles (os imigrantes) conseguiram fazer e seu nível de organização são coisas fenomenais", disse Laster, que é também professor de sociologia de meio período numa faculdade comunitária em Baltimore. "Mas penso que a luta deles é, em aspectos fundamentais, muito diferente da nossa. Não escolhemos vir para cá. Viemos como escravos. E, embora fôssemos cidadãos legais, nossos diretos básicos foram negados."

"Ainda há muitas questões da era dos direitos civis sem solução", disse ele. "Talvez sejamos deixados em segundo plano."

Este debate doloroso borbulha em igrejas e salas de aula, programas de rádio com participação dos ouvintes e mesas de jantar. Alguns negros preferem discutir a questão em conversas particulares, temendo afastar seus aliados hispânicos. Mas outros se manifestam em público, afirmando estar preocupados demais para ficar em silêncio.

"Não teremos poder, não teremos influência", disse Linda Carter-Lewis, de 62 anos, gerente de recursos humanos e presidente em Des Moines, Iowa, da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês). "É assim que vejo este movimento dos imigrantes. Embora milhares e milhares deles não tenham hoje status legal nem direito de votar, este dia está chegando."

PARALELOS

Os líderes imigrantes defendem o uso da linguagem dos direitos civis, afirmando que existem sólidos paralelos entre as duas lutas. E argumentam que seu movimento acabará se tornando um veículo poderoso para a luta pelos direitos de todos os trabalhadores americanos, independentemente da origem.

"Durante o movimento pró-direitos civis, os afro-americanos buscavam o sonho americano. É isso que nosso movimento tenta obter para nossa comunidade", disse Jaime Contreras, presidente da Coalizão de Imigração da Capital Nacional, organizadora da manifestação que atraiu dezenas de milhares de pessoas para Washington em 10 de abril.

"Enfrentamos os mesmos problemas, mesmo que falemos línguas diferentes", afirmou Contreras, que é de El Salvador e escuta discursos de King para se inspirar.

Jackson, que falou na manifestação dos imigrantes em Nova York no dia 1º, ecoou essas opiniões. Ele observou que King, no fim da vida, concentrou-se em melhorar as condições econômicas de todos os americanos, independentemente de raça. E acrescentou que as semelhanças entre os afro-americanos e os imigrantes ilegais são fortes demais para ser ignoradas.

"Também nos negaram a cidadania", disse Jackson. "Também éramos trabalhadores indocumentados que trabalhavam sem salário, sem benefícios, sem o voto. Deveríamos nos sentir honrados por outras pessoas usarem as táticas e estratégias de nossa luta. Não deveríamos dizer que elas roubam de nós. Elas aprendem conosco."

Jackson afirmou que as corporações alimentam as tensões entre negros e imigrantes recusando-se a pagar a todos os trabalhadores um salário suficiente para a subsistência.

John Campbell, metalúrgico negro e ativista pró-direitos trabalhistas de Iowa, concordou. "Isto é um problema de classe", disse Campbell, acrescentando estar decepcionado com os negros que criticam as manifestações dos imigrantes. "Precisamos unir forças. Não vamos melhorar nossa vida como afro-americanos suprimindo os direitos de outros."

RELAÇÕES INCÔMODAS

Mas os negros e imigrantes têm uma longa história de relações incômodas nos Estados Unidos. W. E. B. Dubois, um fundador da NAACP, e outros destacados líderes negros temiam que os imigrantes tirassem o lugar dos negros no trabalho. Ronald Walters, diretor do Instituto de Liderança Afro-Americana, da Universidade de Maryland, disse que os negros aplaudiram quando o governo restringiu a imigração de asiáticos para os Estados Unidos depois da 1ª Guerra Mundial.

Negros e hispânicos também se aliaram. Nos anos 60, King e César Chávez, líder trabalhista de origem mexicana, trocavam correspondência. E quando Chávez foi preso, a viúva de King, Coretta Scott King, o visitou na cadeia, disse Walters.

Nos últimos anos, os negros e hispânicos foram parceiros influentes do Partido Democrata.

Uma pesquisa recente do Centro Hispânico Pew mostrou a ambivalência dos negros em relação à imigração. Quase 80% disseram que os imigrantes da América Latina trabalham duro e têm valores familiares sólidos. Por outro lado, duas vezes mais negros que brancos disseram que eles ou parentes perderam o emprego, ou deixaram de conseguir um trabalho, porque o empregador contratou um imigrante. Os negros também se mostraram mais propensos que os brancos a sentir que os imigrantes roubam empregos de cidadãos americanos.

Walters disse compreender essas emoções conflitantes, afirmando que ele próprio se sente dividido por causa das preocupações com a competição entre imigrantes e negros de baixa qualificação na busca por empregos. Em 2004, 72% dos homens negros na casa dos 20 anos que abandonaram o ensino médio estavam desempregados, ante 34% dos brancos e 19% dos hispânicos.

"Aplaudo sua iniciativa de sair da sombra por causa das questões de direitos humanos envolvidas", afirmou Walters, referindo-se aos imigrantes ilegais. "Dediquei a vida a questões de justiça social como ativista e acadêmico. Neste sentido, estou com eles."

"Mas eles também representam um poderoso ingrediente para a perpetuação de nossa luta", acrescentou Walters. "Temos um problema quando metade dos homens negros está desempregada em várias cidades. Não posso ignorar isso, voltar a ser o velho progressista e simplesmente afirmar que isso não é um problema. Isso é um problema."