Título: Os discretos bilionários da China
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Internacional, p. A20

Num país onde rico é visto com desconfiança, regra é ter hábitos modestos, como Huang, 'contador' de US$ 1,7 bi

PEQUIM

O homem mais rico da China juntou uma fortuna de quase US$ 2 bilhões, mas vive como um simples contador. Depois de deixar sua torre de escritórios de 32 andares à noite, Huang Guangyu retorna a um modesto apartamento que divide com a mulher e duas filhas no sudoeste de Pequim. Ele dispensa a mania de golfe que tomou conta da China, preferindo dar umas espiadas na televisão. E afirma que não tem hobbies. "Não sei fazer outra coisa", diz Huang.

Nos Estados Unidos, a ascensão de Huang - do abandono do ensino secundário à condição de homem mais rico da China - seria celebrada como uma história de Horatio Alger. Mas na China, onde grassa a corrupção, muitos acreditam que as 300 mil pessoas que ficaram milionárias nas duas últimas décadas o fizeram à moda antiga: roubando das massas.

Huang, de 36 anos, e outros novos-ricos por aqui estão numa extremidade da maior divisão entre ricos e pobres desde a fundação da China comunista, em 1949. Pequim vem sendo palco de uma maré crescente de agitação de agricultores e trabalhadores pobres revoltados com a perda de suas terras e fábricas para barões ladrões. Os protestos provocaram apelos de alguns intelectuais pelo fim do que chamam de capitalismo enlouquecido.

"Temos muitas pessoas enriquecidas misteriosamente por aqui. Alguns admiram sua riqueza, mas questionam a sua moralidade", diz Victor Yuan, analista sênior do Horizon Research Group em Pequim. "Você tem de enriquecer em silêncio."

Huang, acionista majoritário da cadeia de varejo Gome Electrical Shantou Appliances, versão chinesa da americana Best Buy, conhece o outro lado da linha da riqueza. Segundo de quatro filhos, ele nasceu num vilarejo predominantemente católico perto de Shantou, a cidade costeira na província meridional de Guangdong (Cantão) famosa por seus empresários.

HISTÓRIAS BÍBLICAS

Numa entrevista, Huang recordou a fome que passou durante seu crescimento. Mas ele foi alimentado com muitas histórias por sua mãe, Zeng Changmin. Ela lhe narrava as aventuras de seus ancestrais que viajaram à Tailândia para negociar açúcar e feijão, e lia trechos da Bíblia.

Uma história bíblica pareceu ter deixado uma impressão profunda nele: a parábola dos talentos de Jesus, em que um amo recompensa dois servos que investiram doações de dinheiro, mas pune o terceiro por ter enterrado sua riqueza no chão.

Huang conta que assistia à missa toda semana. Ele não rezava para ficar rico, mas queria se ver livre da pobreza de sua aldeia - cerca de 300 famílias que cultivavam arroz e trigo em pequenos lotes. Pessoas que conhecem Huang dizem que as crianças de outra aldeia zombavam dele, de seu irmão mais velho e de suas duas irmãs mais novas porque eles eram mais pobres do que seus vizinhos.

"Havia três caminhos para mim", diz ele. "Ir para a escola, ser um soldado ou encontrar uma maneira viver por conta própria." Estudar era caro, lembra Huang, e o Exército não quis um garoto briguento como ele. Assim, aos 16 anos, ele e o irmão partiram para a Mongólia Interior, viajando dias de trem atrás de oportunidades 2 mil quilômetros ao norte. Ali eles mascateavam rádios e pequenos artigos elétricos, mas a parceria só durou alguns meses, diz Huang. Com pouco mais de US$ 100, eles saíram atrás das luzes mais brilhantes de Pequim.

Quando Huang e o irmão chegaram aqui em 1986, fazia dez anos que Mao Tsé-tung morrera, e a China começava a abraçar o capitalismo. As pessoas tinham permissão de iniciar negócios, as rendas aumentaram e os consumidores pediam refrigeradores e máquinas de lavar.

"Vir para Pequim foi um um ponto de virada na minha vida", diz Huang com entusiasmo.

Os irmãos alugaram um loja perto da Praça Tiananmen. Sem dinheiro para comprar artigos, Huang empilhava caixas de televisão vazias para fazer a loja parecer cheia, conta Liu Hongyan, autor de uma biografia de Huang. Quando os compradores encomendavam um item, Huang saía correndo e o comprava de outro comerciante, trazendo-o na traseira de um veículo de três rodas para vendê-lo com algum lucro.

Analistas dizem que, 17 anos depois, Huang usaria a mesma astúcia para catapultar a Gome para o topo de um setor de varejo que movimenta US$ 60 bilhões na China. Depois ter estabelecido uma cadeia com 120 lojas, Huang escolheu as aproximadamente 90 lojas mais lucrativas da Gome para integrar uma companhia aberta negociada na bolsa de valores de Hong Kong. Ele manteve as 30 lojas retardatárias privadas, de modo que as pessoas de fora só viam o lado róseo da Gome, segundo Wang Jizhou, um analista da Alliance Investment Consulting em Pequim.

"Era como se Huang tivesse duas garrafas, uma com vinho, a outra com água - mas os investidores acreditavam que as duas garrafas estavam cheias de vinho", diz Wang.

Com cerca de US$ 400 milhões da abertura do capital e US$ 150 milhões da empresa de investimento Warburg Pincus, Huang mais do que dobrou o número de lojas nos últimos dois anos, para 460, em 131 cidades, empregando hoje 100 mil pessoas.

Comparado nos Estados Unidos com freqüência a Sam Walton, o fundador da Wal-Mart, Huang procura aumentar as vendas oferecendo o preço mais baixo. Ele eliminou o intermediário e negocia diretamente com fabricantes emergentes, como a fábrica de eletrodomésticos Haier, comprando grandes volumes de mercadorias e reduzindo tanto o preço no varejo que os rivais não conseguem competir.

Huang não faz apologia de seu sucesso, mas admite que o desenvolvimento da Gome chamou muita atenção. Muitos analistas acham que Huang chegou ao topo sem ajuda especial de autoridades públicas.

Quando a Gome abriu sua maior loja em Pequim, em julho, mais de 100 mil pessoas se aglomeraram no local, tão grande quanto um Wal-Mart Supercenter, arrematando aparelhos de TV colorida por US$ 79 e fornos de microondas por US$ 36.

A loja estava tão cheia que "ninguém conseguia se mexer lá dentro", lembra sua gerente, Wang Liqun. Apesar de seu escritório minúsculo, a gerente de 37 anos conta que seu salário aumentou sete vezes em relação aos US$ 170 por mês que ela ganhava dez anos antes como balconista da Gome.

'AÇOUGUEIRO DO PREÇO'

Os rivais de Huang, porém, alegam que ele usa seu poder de mercado e influência fabricantes para massacrar a concorrência. Alguns o chamam de "açougueiro do preço". Os fabricantes se queixam de que Huang pode estar extrapolando, mas dizem que ele paga suas contas. Analistas e outras pessoas familiarizadas com a companhia contam que Huang fiscaliza tudo e muitas vezes pressiona seu principais executivos, criando uma atmosfera de medo. Os executivos da Gome não quiseram comentar.

Nas costas dos cartões de visita de Wang e de todos os empregados da Gome estão impressas as três regras cardeais de Huang: "Não aceite presentes de clientes. Não aceite propinas. Não use sua posição para ganhos pessoais." Impresso na ponta do cartão há um número telefônico para pessoas reportarem delitos de empregados.

Huang diz que essas regras refletem sua formação religiosa. "A disciplina da Igreja é muito rígida", diz Huang, que tem doado dinheiro para construir uma igreja, jardim da infância e asilo em sua aldeia. "Ela me tem sido muito útil para ajudar a lidar com as pessoas."

Lu Renbo, um analista ligado ao Conselho de Estado, o organismo mais alto do governo administrativo da China, diz que Huang temia que seus empregados "formassem seus próprios círculos de relacionamento, ou, como dizem os chineses, ocupassem suas próprias colinas".

Lu atribui parte do sucesso de Huang a seu senso de oportunidade. Alguns anos atrás, Huang descobriu que podia retardar os pagamentos aos fabricantes, o que lhe permitiu pegar as grandes somas de dinheiro vivo que suas lojas geravam e investir em imóveis. Analistas dizem que Huang, que controla a Eagle Investments, colheu lucros substanciais no boom do mercado imobiliário comprando e desenvolvendo edifícios de escritórios e casas.