Título: Redenção não gosta de notícia e ignora o mensalão
Autor: Ricardo Kotscho
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Nacional, p. A16,17

Na cidade, ninguém fala em CPI, denúncias de corrupção, cassações ou nas eleições de outubro

Às seis da tarde, na hora da Ave-Maria, até os mortos de Redenção ficam protegidos atrás das grades de ferro. É quando começa a cair uma chuva fina intermitente que espanta o único telespectador do aparelho de TV instalado pela prefeitura numa praça que fica no caminho do Restaurante O Gatinha, recomendado pelo farmacêutico Raimundo. Gatinha é o nome de guerra de Francisco Assis Maia de Souza, 43 anos, o dono, churrasqueiro e único garçom desse restaurante que fica aberto até mais tarde numa cidade que vai dormir cedo. Souza assa uma carne-de-sol na brasa preparada por ele mesmo e serve um baião-de-dois (arroz misturado com feijão) feito pela sogra que valem a viagem.

O pequeno salão está cheio em plena segunda-feira - todo mundo de olho na televisão, que na hora da novela das sete exibe o último DVD pirata de Reginaldo Rossi, o Roberto Carlos do Nordeste, acompanhado de grande orquestra e balé. De camiseta, bermuda e chinelos de dedo, com um gordo gato siamês de nome Ceará no colo, Gatinha atende de má vontade ao meu pedido para colocar a TV no Jornal Nacional. Alguns fregueses reclamam, outros vão embora. Em Redenção, parece que Reginaldo Rossi dá mais Ibope do que as notícias do dia. Nas mesas, entre uma cerveja e uma música e outra, ninguém fala em CPI, denúncias de corrupção, cassações, eleições, do fim do mundo anunciado a cada dia em Brasília.

MUSEU

Um grupo de 28 turistas poloneses fica chocado com o que encontra no Museu Senzala Negro Liberto instalado há três anos no antigo Engenho Livramento, que fabrica a cachaça Douradinha desde 1873, agora exportada para a Europa. "É muito forte para mim ver isso", comenta comigo em alemão o pequeno empresário polonês Gorczynski Bogdan ao sair da senzala construída no século 18 sob a casa-grande da fazenda pelo senhor de engenho Semeão Telles de Menezes Jurumenha.

Tomada por nuvens de morcegos, a senzala foi preservada pela família do atual proprietário, Hipólito Rodrigues de Paula Filho, que quase todos os dias recebe excursões de turistas estrangeiros, em sua maioria europeus, vindos da Finlândia, Hungria, Áustria, Polônia, República Checa, Alemanha. A visitação custa dois reais, dura uma hora e é conduzida por um dos cinco guias do museu.

No Memorial da Liberdade, estão expostos documentos da compra e venda de escravos e a cópia da carta que declarou livres todos eles, ao lado de instrumentos de tortura como o vira-mundo - pesadas algemas de ferro que prendiam ao mesmo tempo mãos e pés, obrigando-os a ficar de cócoras. Tem lá até um aparelho utilizado para extrair os dentes e os seios das escravas mais bonitas - por ordem das sinhás que sentiam ciúmes de seus maridos e filhos, como explica o guia Paulo.

Sem janelas, com pé-direito baixo, que vai diminuindo à medida que se caminha para os fundos, até chegar a 80 centímetros, o cenário da senzala é assustador. Como conseguia alguém sobreviver ali?, perguntam os incrédulos poloneses ao guia Paulo, enquanto tentam espantar os morcegos. Conta ele que, normalmente, as senzalas ficavam afastadas da casa-grande, mas aqui ela foi construída no porão por medida de economia e também para permitir maior controle dos escravos, que só eram trancados à noite. Tinham de entrar em silêncio e eram proibidos de cantar. Permanecem ali intactos o tronco onde os escravos eram punidos a chibatadas e a solitária cravada na parede em que não é possível um adulto ficar em pé.

INGLÊS

Sem nenhum tipo de ajuda oficial, o museu, que já recebeu mais de 10 mil visitantes, é mantido graças ao empenho da diretora Eneida Rodrigues, filha de Hipólito, e de Valéria Muniz, cunhada do proprietário do Engenho Livramento, autora desta "reflexão crítica" afixada numa parede do Memorial da Liberdade: "Negros e pobres são tratados de forma desumana em nosso país. A lei é a mesma para todos? Será que existe um novo tipo de escravismo disfarçado? A mentalidade escravocrata sobrevive?" As duas agora estão bancando um curso de inglês para os guias.

Se quisessem conhecer algum descendente de escravos, os turistas europeus teriam dificuldades. É preciso andar e conversar bastante até encontrar Francisco Bibiano da Silva, de 49 anos, o Neguinho, bisneto de escravos da Fazenda Gurguri que fica no alto de um serrote no final de um caminho de pedras a 12 quilômetros do centro de Redenção. "Sou filho natural de lá mesmo da Fazenda Gurguri, mas vim para a cidade com 15 anos", conta Francisco ao voltar para sua casa na Rua 13 de Maio, esquina com Castro Alves, depois de mais uma jornada de trabalho num roçado que cultiva num canto do Engenho Livramento, onde lhe emprestaram um pedaço de terra para plantar.

Com um sorriso de poucos dentes, o bisneto de escravos acha graça quando lhe perguntam como era a vida de seus antepassados. "Não era do meu tempo, sabe... Ouvi muita história da minha mãe que ela ouviu da mãe dela, mas não gravei na memória. Gostava quando ela cantava os benditos, mas eu não sei, não." Mesmo sem receber nenhuma bolsa ou ajuda do governo, Neguinho acha que "as coisas estão melhorando no Brasil porque ficou mais fácil comprar as coisas". Conformado com o destino, de nada se queixa. "Graças a Deus não falta comida em casa. Só não dá para comprar roupa, perfume. É que eu não gosto de vender o que planto. Prefiro dar a uma pessoa que vender."

Outro raro remanescente das famílias de negros escravos mora na última casa da cidade no caminho de quem vai subir para o Gurguri. "O Negão?", indagam de volta no bar onde pergunto por Patrocínio, filho de Carlos, que veio da Bahia com os pais, escravos libertos trazidos pela família Bezerra, e trabalhou como gari da prefeitura até morrer, aos 53 anos.

Às quatro da tarde de um dia de semana, José do Patrocínio Silva, de 40 anos, dorme profundamente na rede do casebre de dois cômodos onde mora com a mulher, e se assusta com nossa chegada. Alto e forte, aposentado por problemas de saúde pelo INSS, Patrocínio só fala por monossílabos. Quando lhe pergunto sobre seu xará, o líder abolicionista, vai cortando a conversa."Não sei quem foi não."