Título: Cidade que antecipou a Abolição hoje vive escrava da violência
Autor: Ricardo Kotscho
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Nacional, p. A16,17

Na cearense Redenção, de 25 mil habitantes, restam poucos remanescentes dos escravos libertos em 1883

Existe uma cidade no Brasil onde a escravidão foi abolida sem choro e com muita festa cinco anos antes da promulgação da Lei Áurea. O nome dela é Redenção, abriga 25 mil habitantes em 225 quilômetros quadrados e fica no norte do Ceará, junto ao Maciço do Baturité, a apenas 66 quilômetros de Fortaleza.

"A liberdade começou aqui", proclama o portal do Museu Senzala Negro Liberto, bem na entrada dessa pequena cidade povoada no sopé da serra nos tempos do Império, que ainda sobrevive de lembrar os acontecimentos de 1º de janeiro de 1883, data em que os últimos 116 escravos foram libertados por seus senhores.

Para entender as razões e os caminhos dessa façanha tão pouco conhecida de nossa história, às vésperas da celebração de mais um 13 de Maio, o melhor a fazer é sair andando por suas estreitas ruas de pedra batizadas com os nomes dos heróis da Abolição. Como viverão hoje os orgulhosos moradores da antiga Vila do Acarape, no centro da planície cortada pelo Rio Pacoti, lá aonde a liberdade chegou antes no país que foi um dos últimos do mundo a acabar com a escravidão?

Vivem, literalmente, atrás das grades. Com medo dos assaltos e da violência que nos últimos anos migraram da área metropolitana de Fortaleza para as cidades menores. Na hora em que as rádios anunciam a Ave-Maria e o sol se deita por trás das montanhas, como se tocasse uma sirene silenciosa, cadeiras de plástico branco começam a ser recolhidas para dentro das casas cercadas de grades por todos os lados, subindo até as varandas do piso superior dos sobrados.

É a hora em que Raimundo Franco Pereira, de 74 anos, cerra as pesadas portas de ferro da Farmácia Santa Rita e passa a atender a freguesia por trás delas, pelas frestas das grades. A farmácia fica na Praça da Matriz, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, também ela toda cercada por grades de ferro com três metros de altura que protegem a imagem do Cristo crucificado. "Parece uma cidade-escritório. Abre às oito da manhã e fecha às seis da tarde", constata o farmacêutico, que apesar disso nem pensa em deixar a cidade. "Nasci aqui, vou morrer aqui."

RENDA

Redenção ainda vive da cana-de-açúcar que é vendida para usinas como a Ypioca, uma das mais tradicionais marcas de aguardente do País, de algumas plantações de frutas, especialmente manga e banana, e lavouras de subsistência. Mas a principal fonte de renda da cidade é a aposentadoria recebida pelos idosos, o que faz com que boa parte da população passe o dia olhando o tempo passar.

O índice de analfabetismo entre a população da cidade com mais de 15 anos ainda é muito alto (30,05%), bem acima da média nacional (13,63%). Apenas 53% das casas estão ligadas à rede de abastecimento de água e 80% delas ainda não têm ligação de esgoto. Foi de zero a taxa de mortalidade infantil em 2003, mas permanece alta a incidência de doenças dos tempos da escravidão que se imaginavam erradicadas, como a tuberculose (15,57%), a hanseníase (11,29%) e a de chagas (oito casos notificados em março).

Até cinco anos atrás, os moradores dormiam de portas e janelas abertas, deixavam os carros na rua sem fechar os vidros, ficavam até tarde da noite conversando nas calçadas diante de suas casas. Delegado municipal de Redenção há dois anos, José Ribamar Gomes Lemos reconhece que pouco pode fazer para defender a cidade assustada. Conta com apenas cinco inspetores de polícia, dois escrivães e uma única viatura, uma Parati 1999, que já está quase entregando os pontos. Dessa forma, não consegue nem fazer cumprir a lei seca que ele próprio decretou ao chegar à cidade, ordenando o fechamento dos bares depois das 22 horas. "Vou fiscalizar como?"

Com sua experiência de 28 anos de polícia, Gomes Lemos atribui aos problemas de falta de habitação na área metropolitana a inversão do fluxo migratório - para ele, a principal causa do drama enfrentado na área de segurança. "Antigamente, nós tínhamos um êxodo do interior em direção às capitais. Agora, está acontecendo o contrário. Por falta de moradias ou porque o aluguel ficou muito alto, os moradores da periferia de Fortaleza e de Maracanaú (grande distrito industrial) transformaram as cidades menores em dormitórios e trouxeram com eles as mazelas das favelas urbanas."

RUÍNAS

Passar três dias em Redenção é como fazer uma viagem ao Brasil colonial e dar de cara com um cenário de subúrbio de qualquer grande cidade do Brasil do terceiro milênio convivendo com as ruínas das senzalas e os instrumentos de tortura dos tempos da escravidão. O passado e o presente convivem mal aqui como se viu no último domingo de Páscoa.

Pela primeira vez, não chegou até o fim a tradicional romaria em que os penitentes sobem a escadaria de 500 degraus morro acima por trás da Igreja de Santa Rita até o Santuário de Nossa Senhora. Os fiéis seguidores da maconha, alguns deles nus, simplesmente não a deixaram passar, e a romaria teve de dar marcha à ré.

A um quarteirão da delegacia, recolhida ao quarto de dormir por problemas de saúde, a professora Ladeisse Silveira, de 64 anos, não esconde sua tristeza quando lembra a romaria interrompida da Semana Santa. "Como é que pode acontecer uma coisa dessas? Onde estão os políticos, onde está a polícia?", pergunta, indignada.

Se "esta terra tem história", como gostam de dizer seus moradores mais antigos, Ladeisse pode ser considerada a "dona da história" de Redenção - uma saga do Brasil profundo que ela guarda na cabeça e agora está começando a colocar no papel. Na Redenção de 2006, pode-se andar horas pelas ruas sem cruzar com um único negro. Deitada na cama, ela explica o motivo. Os negros libertos de Redenção eram "escravos de segunda mão", quer dizer, já vinham para o Ceará comprados de senhores de outros Estados, em especial da Bahia, da Paraíba e do Maranhão. Quando a liberdade chegou, eles foram embora, ao encontro de seus parentes que haviam ficado em outras cidades brasileiras.

Muito poucos ficaram. Mas, para começar sua pesquisa, Ladeisse não precisou nem sair de casa, já que morava com a família o Preto Almino, um filho de escravos libertos que fora trabalhar para Honorato Gomes Silveira, o avô de Ladeisse e membro da primeira Câmara Municipal de Redenção, instalada em 1871.

No Sítio Serrinha Bela, lembra-se bem a professora, Preto Almino fazia um pouco de tudo. Pilava arroz, carregava nas costas enormes feixes de lenha - "mais do que um burro de carga" - para alimentar o fogão, e nas poucas horas de folga cortava as unhas do pé com uma faca grande. "Papai (José de Arimatéia Silveira) sempre achava que Almino trabalhava demais. Não precisava tanto, mas ele gostava, não fazia outra coisa. Falava pouco, era difícil arrancar as coisas dele."

Uma das poucas histórias que Almino gostava de contar teria se passado, de acordo com a lenda transmitida de pai para filho, no Sítio São Bento, Distrito de Araticum, na Serra de Manoel Dias. Coronel Zé Bento, dono de terra e escravos, engraçou-se por uma cabocla nova e bonita, "de rabo grande", que passava em frente à casa de farinha onde os escravos puxavam a bolandeira para moer a batata da mandioca.

Ao mexer com ela, o dono da fazenda levou uma paulada de um dos escravos, que em seguida fugiu correndo para o mato. Depois, ele foi encontrado morto pendurado numa árvore. Uns contavam que foi suicídio; outros, que Zé Bento pendurou o escravo na árvore. O certo é que o morro onde ficava a fazenda até hoje é conhecido como Cabeça de Negro.

HISTÓRIA SUCINTA

Pergunta inevitável que sempre fazem para dona Ladeisse é por que justamente Redenção se tornou a primeira cidade brasileira a libertar seus escravos, 15 meses antes do restante da então Província do Ceará, a pioneira no País, e cinco anos antes de ser proclamada a abolição da escravatura em todo o Brasil. Meticulosa, ela gosta de contar a história como aconteceu desde o começo. Mas, já um pouco cansada de falar, a professora passa ao repórter um texto em que resumiu os seus quase 40 anos de pesquisa.

Sob o título História Sucinta da Cidade de Redenção, situa o início do movimento abolicionista na região em 1868, mesmo ano em que o povoado de Acarape (caminho dos peixes, em tupi-guarani) foi promovido à categoria de vila pelo presidente da província, Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo. No mesmo ato, ele assinou também uma lei autorizando o município a gastar anualmente 15 mil réis "em campanhas para a libertação dos escravos, especialmente do sexo feminino".

Vários fatores começaram a confluir simultaneamente para propiciar um clima favorável à criação da Sociedade Redentora Acarapense, em dezembro de 1882. No ano anterior, o líder dos jangadeiros, Francisco José do Nascimento, o célebre Dragão do Mar, impediu o desembarque de novos escravos no porto de Fortaleza. Como o porto era de baixo calado, o transporte entre os navios ao largo e a terra só podia ser feito por meio de jangadas.

Condoído com a situação dos negros com quem convivia, ao se recusar a transportá-los o líder jangadeiro provocou o fechamento do comércio de escravos e abriu o caminho para a luta abolicionista. Já circulava por essa época em Fortaleza o Libertador, jornal de periodicidade irregular publicado pela Sociedade Cearense Libertadora e "destinado a propaganda e interesses abolicionistas", que teria um papel fundamental na divulgação do movimento.

Ao mesmo tempo, o cultivo da cana já estava sendo substituído pela pecuária, que dispensava o trabalho escravo. A seca que atingia o Ceará deixava os escravos sem ter o que fazer e onerava seus proprietários.

COMUNICAÇÃO MAIS FÁCIL

Com a construção da Estrada de Ferro de Baturité, que ligava a região a Fortaleza, tornou-se mais fácil a comunicação entre os abolicionistas. Pois foi numa viagem a Fortaleza feita nesse trem que Manuel Fernandes Correia de Araújo, que era escrivão das rendas gerais no município, acabaria tendo um papel decisivo para a luta organizada pela Sociedade Redentora Acaparense, dirigida por Gil Ferreira Gomes.

Na capital, Correia de Araújo viu como avançava o movimento abolicionista e, ao voltar, comunicou o que observara ao coletor Joaquim Agostinho Fraga. Ambos transmitiram ao coletor provincial Antonio da Silva Matos a intenção de fazer algo de mais concreto em defesa dos trabalhadores escravos.

O próprio Silva Matos alforriou os três escravos que possuía. Seu exemplo foi amplamente imitado pelos senhores de escravos da região e culminou com a "celebração da alforria", no dia 1º de janeiro de 1883, com a presença de uma notável comitiva de abolicionistas (entre eles José do Patrocínio) vinda por trem de Fortaleza.

Daquele tempo restam apenas os nomes dessas famílias nas lápides do Cemitério Senhor do Bonfim, cuidadosamente zelado pelo coveiro João Neves Rodrigues, de 58 anos, que herdou o ofício do pai e está há mais de 30 anos cuidando do lugar. "Conheço cada túmulo, todas as famílias enterradas aqui. Da minha data para cá, conheço tudo", orgulha-se o filho de Benedito Albino Rodrigues, falecido há sete anos, enquanto caminha com suas lembranças pelas alamedas do cemitério.

"Tem um aqui de 1860, que ainda é do tempo da escravidão. Enterrei aqui outro dia a dona Lurdes, ali fica o Chico do Cazuza, é tudo gente que já morreu", vai contando, como se mostrasse os cômodos da sua casa. "Agora sou chefe aqui, antes era ajudante do meu pai."

O coveiro é de longe o homem mais animado da cidade. Está de bem com a vida. Só reclama do salário - "Dá 300 reais com menos 46 de desconto" -, que ainda por cima está sem receber faz dois meses. "Aqui eu trabalho muito. Enterro, desenterro, faço de tudo", explica.

"Vem ver onde está meu pai, junto da minha mãe e do meu filho, olha o salão de festas que fiz aqui", convida. Diante de parte da família morta reunida, João Rodrigues anuncia: "O mais bonito vai ser o meu, bem aqui nesse canto, no lugar de um que morreu em 1907, que não tem mais dono."