Título: De comédias e bagatelas
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

No mundo contemporâneo, a política torna-se um exercício de fuga da realidade. E, às vezes, um espetáculo circense. Veja-se essa greve de fome de Anthony Garotinho. Mais que um reality show da política, é a prova cabal de que o velho Montesquieu estava certo ao dizer que "o tom do mundo consiste muito em falar de bagatelas como de coisas sérias, e de coisas sérias como de bagatelas". O marido da governadora Rosinha perde a razão quando queima o manto de pré-candidato à Presidência da República para vestir a roupa de ator de circo mambembe. É um direito que lhe cabe protestar contra situações que considere injustas. Pode até pregar extravagâncias como a censura da imprensa brasileira por organismos internacionais. Cada louco com sua mania. Mas é um dever comportar-se como cidadão que pleiteia o cargo de mandatário da Nação. O poder banha-se de liturgia. E esta exige do político posturas adequadas e respeito a princípios do meio social onde atua. Quando o ator ultrapassa os limites do bom senso, cai no terreno baldio da incredulidade.

E assim, entre comédias e bagatelas, o Brasil expande a política-espetáculo. Até em espaços considerados sagrados os hábitos políticos penetram fundo. Veja-se o convite para o presidente da República discursar no altar de uma igreja, em São Bernardo, por ocasião da missa comemorativa do 1º de Maio. Lula fez campanha dentro da igreja. Antigamente, exagero como esse constituía sacrilégio. Hoje, é abençoado. Quem foi ali assistir a um ato religioso nem mesmo pôde queixar-se ao bispo. O sacerdote terá receio de pegar o chicote para expulsar os vendilhões do templo. E não venham com a história de que essa crítica revela posições conservadoras. Ou com o argumento de que a religião palanqueira é a da libertação do povo. Lugar sagrado precisa ser preservado da politicagem. Até porque é tarefa impossível distinguir valores morais entre os 30 partidos brasileiros.

Da mesma forma, o espaço asséptico da Justiça só deve ser ocupado por gente predestinada a conservar uma linha própria entre as pressões coercitivas da sociedade. A integridade é a virtude maior dos magistrados. Onde está a integridade de juízes que politizam decisões ou agem sob a influência de governos? Lembre-se que os ministros Nelson Jobim e Edson Vidigal, respectivamente ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, deixaram seus cargos com uma bagagem de críticas. Ambos voltaram para as lides políticas e o segundo vestiu rapidamente a camiseta de candidato ao governo do Maranhão. A Justiça seria alçada ao patamar mais alto da grandeza se a magistratura fosse povoada exclusivamente por perfis íntegros, incapazes de trocar a sóbria toga pelo terno vistoso da política. Não é de estranhar que os preceitos constitucionais da autonomia e independência dos Poderes sejam constantemente atropelados por injunções de toda ordem.

A quebra de normas cria buracos no tecido institucional e favorece a personalização da política. A sociedade afasta-se das instituições. As eleições reduzem-se a batalha entre rivais. A menos de cinco meses das eleições, não há uma idéia central, um projeto vigoroso que cause comoção na opinião pública. O que se ouve no cenário das andanças de pré-candidatos é uma toada de xingamentos, autolouvação e exibição do dom da dissimulação. Os gregos da Antiguidade usavam máscaras (persona) para representar as emoções, algumas com traços horripilantes - para caracterizar as tragédias -, outras com traços hilariantes - para simbolizar as comédias. Os nossos atores alternam as máscaras, seja medindo a perda de peso pela greve de fome, seja enxugando lágrimas de filhos.

Desse modo, a hilaridade se espraia nos desvãos da pré-campanha. É a buchada no Nordeste, um prato exótico que o pré-candidato tucano tem de enfrentar para atrair simpatia, enquanto é chamado de Geraldo "Alfinim", um doce típico do cotidiano dos nordestinos. É Lula negando haver crise e manifestando apoio à soberania boliviana, esquecendo que os contratos com a Petrobrás foram feitos sob a mesma soberania. Evo Morales, o "irmão mais moço", é mais que um justo. Livre da fogueira do mensalão, o nosso presidente apresenta o éden terrestre que acaba de ser descoberto. Maquiavel aconselhava o príncipe a divertir e reter o povo em festas e jogos. No Brasil, hábitat do Homo ludens, a diversão das multidões é estatizada e compartilhada com centrais sindicais, uma das quais é a porta-voz do governo lulista. Basta ver as festas do 1º de Maio, com milhões de pessoas mobilizadas para ver seus ídolos e participar de sorteios. O Império Romano, onde o povo pedia pão e circo, é café pequeno comparado ao Império de dom Luiz, Primeiro e Único, Pai dos Pobres.

O Estado-espetáculo, a despolitização da política, a pasteurização partidária, a comédia massificada, o pão ensopado no molho assistencialista, a intoxicação pela propaganda e a fuga da realidade: eis o apreciado menu destes tempos autistas. Não é de admirar que por falta de um sinal mais forte, uma luz mais brilhante, um caminho mais seguro, as pessoas acabem optando pela velha vereda, sinuosa, porém conhecida. Melhor qualquer bugiganga que nenhum presente.